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É VERDADE QUE O INDIVÍDUO NÃO É UM PROBLEMA PARA MARX?



Sued Carvalho, professora.


Sou graduada em História e essa experiência, quando se é marxista, tem um gosto agridoce, pois se por um lado é um curso riquíssimo, por outro lado reproduz diversas calúnias e difamações acerca dos movimentos sociais, principalmente de matriz comunista e marxista. Não se pode esperar outra coisa, afinal a educação, no capitalismo, tem como objetivo naturalizar a sociabilidade burguesa, sendo este, inclusive, um tema sobre o qual pretendo escrever em breve.


A desinformação que mais ouvi e li em minha época de graduação e, posteriormente, no mestrado, sobre o pensamento marxista é que não é uma preocupação dele o indivíduo e a sua subjetividade. Para qualquer estudiosa ou estudioso sério de Marx essa é uma piada de mau gosto, pois essa é uma questão de primeira ordem. Este pequeno texto procura responder esse mal entendido.


Para Marx o indivíduo e sua subjetividade não estão descoladas da concretude das relações materiais de produção da sociedade, o indivíduo atua dentro do horizonte de possibilidades de sua época, mas, dentro dessa perspectiva, não é um ente passivo, determinado pelos “meios de produção” que possibilitam a perpetuação de sua existência, pelo contrário:


Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos. (MARX, 2011, 25).


Todo o cerne da filosofia marxista está contido nesse importante trecho. O ser humano transforma a natureza através de seu trabalho e é dotado de potencialidades inventivas inestimáveis, mas é, antes de tudo, um ser histórico e, como um ser histórico, está diante de heranças culturais, meio ambiente, acesso aos meios de produção de sua sociedade, etc. Se os indivíduos tem esse poder transformador na sociedade, o que os oprime a não exercê-lo? O que limita o indivíduo de aproveitar o que suas potencialidades permitem?


Uma preocupação fundamental para Marx é a contradição de que vivemos na época que mais permite o desenvolvimento do intelecto, dos talentos, da realização dos desejos individuais, mas, em vez disso, amargamos em uma situação de exploração cada vez mais aprofundada:


Como, portanto, considerada em si mesma, a maquinaria encurta o tempo de trabalho, ao passo que utilizada de modo capitalista, ela aumenta a jornada de trabalho; como, por si mesma, ela facilida o trabalho, ao passo que, utilizada de modo capitalista, ela aumenta sua intensidade, como, por si mesma, ela é uma vitória do homem sobre as forças da natureza, ao passo que, utilizada de modo capitalista, ela subjuga o homem por intermédio das forças da natureza; como, por si mesma, ela aumenta a riqueza do produtor[1], ao passo que, utilizada de modo capitalista, ela o empobrece etc. (MARX, 213, p. 513).


O avanço da tecnologia permite trabalho feito em menor tempo, dando direito ao ócio para o trabalhador e a trabalhadora ter ideias, exercer criatividade e pleno direito ao lazer, porém a forma como nossa sociedade funciona faz com que as máquinas sirvam ao enriquecimento de poucos diante do empobrecimento da maioria. O trabalho, no capitalismo, é um pesadelo para o indivíduo que se vê preso a um emprego de sua força que o exaure fisicamente, deixando a ele pouco tempo e energia para sua criatividade e lazer.


As mesmas leis, instituições etc. que servem a tal desenvolvimento no sentido classista estrito da burguesia, que produzem a liberdade do laisser faire, constituem simultaneamente os estranguladores impiedosos da personalidade que de fato se desenvolve. A divisão capitalista do trabalho, sobre cujo fundamento unicamente pode se dar aquele desenvolvimento das forças que constituem a base material da personalidade desenvolvida, simultaneamente submete a si, o homem, fragmenta sua personalidade em uma especialização sem vida etc. (LUKÁCS, 2021, p. 49).


A luta de classes não é um conceito aplicado na realidade, mas pelo contrário, é uma apreensão de uma realidade concreta. Não é Marx que insere os indivíduos na classe trabalhadora, mas a sociedade capitalista que os define assim. A classe trabalhadora é diversa, nela estão contidos diversos grupos que, juntos, são privados dos meios de produção e obrigados a vender sua força de trabalho por determinada quantia.


Na sociedade capitalista, onde todas “as relações pessoais emergem como simples emanação das relações de produção e de troca.” (MARX, 2011, p.112) os trabalhadores estudam para melhorar seu trabalho, para aumentar sua atratividade para os burgueses, para se preparar melhor para o mercado de trabalho, nunca para seu próprio gosto, nunca para seguir sua própria paixão, a própria relação familiar torna-se um fardo diante das cobranças e competições, assim como da preocupação com a velhice dos pais idosos. O indivíduo, na classe trabalhadora, é esmagado, transformado em parte de uma massa sem perspectiva.


No pensamento marxista não há romantização do trabalho ou do trabalhador, mas uma crítica severa ao trabalho no capitalismo.


Pois precisamente do condicionamento natural do trabalho segue-se que o homem que não possui outra propriedade senão sua força de trabalho, torna-se necessariamente, em todas as condições sociais e culturais, um escravo daqueles que se apropriam das condições objetivas do trabalho. Ele só pode trabalhar com sua permissão, portanto, só pode viver com sua permissão. (Marx, 2012, p. 24).


Não é Marx que, através de um exercício intelectual assim define, mas a sociabilidade capitalista, cabendo ao pensador a constatação e análise profunda dessas contradições. O indivíduo vive, ama, pensa e escolhe diante de circunstâncias e possibilidades concretas e, no capitalismo, elas são bastante limitadas, sobrando tornar-se um “avarento ascético, mas usurário, um escravo ascético, mas producente”. (MARX, 2004, p. 141).


Para libertar o indivíduo das limitações concretas a realização de seu potencial é preciso entender essas limitações concretas, dai a preocupação dada, por Marx, ao estudo do meio de produção capitalista.


O pensamento marxista não apenas tem o indivíduo como preocupação primordial, como também é, eu diria, o que melhor responde às perguntas concernentes a questão.


Bibliografia


LUKÁCS, Gyorgy. Goethe e seu tempo. Boitempo Editorial: São Paulo, 2021.

Marx, Karl. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858. Boitempo editorial: São Paulo, 2011

_____. Manuscritos Econômicos Filosóficos. Boitempo Ediorial: São Paulo, 2004.

_____. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. 2011: São Paulo, 2011

_____. O Capital: Crítica da economia política. Boitempo Editorial: São Paulo, 2013.

_____. Crítica do programa de Gotha. Boitempo Editorial: São Paulo, 2012.



[1] Para Marx o produtor é aquele que usa sua força de trabalho para produzir valor, o trabalhador.


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