Sued Carvalho, professora
Tão vermelho quanto o pau-Brasil, primeiro produto explorado pelos europeus nestas terras, é o sangue que escorre das páginas da História dos camponeses no Brasil. O latifúndio foi, pode-se dizer, a primeira grande instituição construída em terras tupiniquins após a larga invasão portuguesa dos territórios antes ocupados por comunidades tupis, tapuias, dentre outras. As sesmarias dadas pela figura do rei a nobres, comerciantes e aventureiros lusos garantiam a exploração de largas regiões, cuja posse seria consolidada pelo assassinato e extinção de diversas tribos nativas, processo de genocídio que jamais foi interrompido, basta observar as declarações e ações do governo do fascista Jair Bolsonaro.
A independência do Brasil da coroa portuguesa, em 1822, nada fez para mudar essa situação, assim como não encerrou a escravidão das africanas e africanos sequestrados de diversas regiões da África. O arcaísmo da classe latifundiária foi demonstrado também por todas as sabotagens feitas à industrialização, sob a justificação de uma suposta “vocação agrícola” do Brasil, que condenou o país a mais de cem anos de monocultura concentrada no sudeste, responsável pela destruição das matas nativas e pela brutal desigualdade regional que ainda testemunhamos.
Passando pelas diversas mortes perpetradas contra todos e todas que lutaram pela democratização do uso da terra, permanência da escravidão de forma clandestina e apoio aos vinte e um anos de Ditadura Militar, os latifundiários chegam ao Século XXI com seus privilégios intocados, controlando uma larga bancada no parlamento burguês e exercendo um papel central no capitalismo dependente brasileiro, no sentido de atrelar, cada vez mais, a economia nacional à exportação de commodities, direcionamento econômico responsável pela continuidade dos ataques às poucas comunidades nativas que persistem após quinhentos anos de genocídio, assim como acelerar a deterioração do meio ambiente.
O latifúndio é o que há de mais reacionário na burguesia brasileira e seu poder está intocado há séculos. Quem duvida que o poder do latifúndio não foi afetado pela aceleração da urbanização? Basta abrir qualquer jornal que tenha o mínimo de seriedade para ler sobre as sabotagens ao Ibama, as queimadas monumentais responsáveis pela destruição de ecossistemas essenciais como o pantanal e a floresta amazônica passando impunes e a oscilação abismal de preços de alimentos básicos. É por entender o poder orgânico que o latifúndio exerce sobre o Estado burguês que diversos movimentos de camponeses e indígenas se organizam e lutam, alguns reformistas e outros, como é o caso da Liga dos Camponeses Pobres (LCP), de caráter revolucionário.
A Liga dos Camponeses Pobres está organizada nacionalmente desde os anos 90 e difere dos outros movimentos por defender uma sociedade socialista, assim como a organização e decisão através de assembleias populares para os assuntos do dia a dia de suas ocupações. Desde a sua fundação a LCP lida com acusações e calúnias, assassinatos de militantes, prisões ilegais e invasões sem mandato, logo não se pode dizer que a organização não esteja acostumada com assédios do latifúndio e do Estado que o representa, porém, essa semana a situação chegou a um novo patamar: Os camponeses que formam o acampamento Tiago dos Santos, ligado ao LCP, foram acusados, sem qualquer prova, de terem assassinado um tenente da reserva, resultando em uma série de difamações que chegaram ao twitter do próprio presidente fascista Jair Bolsonaro que, como de praxe, mostrou um vídeo de outro acampamento onde os camponeses pobres expulsam policiais invasores sem mandato alegando que este fato ocorreu no acampamento Tiago dos Santos.
O LCP, sentenciado antes de qualquer investigação, alega que o assassinato ocorreu a dezenas de quilômetros do acampamento, isso não impediu, porém, a polícia militar do Estado de Rondônia de atacar, cercando o acampamento Tiago dos Santos, que abriga mais de 600 famílias que ocupam uma área pública. Mães, pais, crianças e militantes da Liga de Camponeses Pobres estão sob a mira sedenta da PM.
O latifúndio já não derramou sangue demais? Onde estão as denúncias dos grandes jornais de esquerda do país? Vamos ver, sem escrever uma letra sequer a respeito, uma mentira ser usada para justificar um massacre? Tudo que vier a ocorrer no acampamento Tiago dos Santos pelos próximos dias não recaíra apenas nas costas do Estado burguês e do latifúndio, o sangue respingará sobre os rostos de todos que olharam passivos.
Como irá se encerrar mais este capítulo na criminosa história do latifúndio no Brasil? Não há como saber ainda, porém uma coisa é certa: A luta pela terra, mais antiga do que o próprio Brasil, não se encerrará em Rondônia.
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