Por Peterson Pacheco, cientista social
Nada mais razoável do que um ano eleitoral suscitar polêmicas a respeito das formas de participação nas eleições e formas de exercício de mandatos de representação. Em cada ciclo eleitoral crescem as experiências de candidaturas coletivas. Quando bem sucedidas se transformam em mandatos coletivos. Hoje, objetivamente, mandatos coletivos são uma inovação institucional. Não existe, de fato, possibilidade jurídica de candidatura coletiva. O ordenamento jurídico define a candidatura, logo, o mandato, como evento individual (1). Tramita na Câmara dos Deputados o PEC 379/2017 que pretende viabilizar as candidaturas coletivas.
Mas, a viabilidade jurídica é secundária. Aqui interessa pensar: essas experiências coletivas melhoram a democracia? São experiências que efetivam consciência de classe? Os mandatos coletivos estimulam uma cultura política que privilegie a perspectiva mais crítica e transformadora da ordem social?
Um registro eleitoral, muitas vozes
O mandato coletivo seria aquele no qual um ator político é registrado como responsável pelo mandato, porém, várias pessoas participam das decisões. Muitas candidaturas coletivas foram bem sucedidas em 2018. Algumas emergidas dos organismos de formação política patrocinados por consórcios de empresas privadas, outras candidaturas estavam vinculadas aos setores partidários progressistas.
O PSOL, por exemplo, conseguiu eleger alguns representantes que se apresentaram sob o rótulo de candidaturas coletivas. A “BANCADA ATIVISTA”, composta por nove pessoas, sete mulheres, uma delas transexual, além de dois homens, um deles integrante do movimento negro, conquistou um mandato na Assembleia Legislativa de São Paulo; a “JUNTAS”, formada por cinco mulheres, todas negras, sendo uma delas também trans, foi eleita para ocupar uma cadeira na Assembleia de Pernambuco; e a experiência da Gabinetona, apoiada pelo Muitas, que já funcionava na Câmara Municipal de Belo Horizonte, desde 2016, nestas eleições conseguiu eleger duas mulheres negras: Andréia de Jesus, para a Assembleia de Minas Gerais, e a então vereadora Áurea Carolina para o Congresso Nacional.
O marco comum dessas tantas experiências é o fortíssimo vínculo da militância com as pautas identitárias. Essas candidaturas são, quase sempre, construídas a partir de discursos que tentam equilibrar uma perspectiva de coletivização do exercício da representação do mandato político e uma defesa do “lugar de fala” da sua militância. Djamila Ribeiro chama atenção para a necessidade de mostrar que “certas identidades têm sido historicamente silenciadas e desautorizadas no sentido epistêmico, ao passo que outras são fortalecidas” (2). O resultado é a construção de uma plataforma política razoavelmente sólida em termos de comunicação eleitoral e bem coerente se a métrica de análise for restringida ao espaço de militância das pessoas envolvidas no projeto eleitoral.
De alguma maneira essa militância atua no sentido de reforçar a sua legitimidade em defender as políticas identitárias, ao mesmo tempo que defendem a urgência na adoção de políticas públicas atreladas às suas causas. Na formulação de Carlos Silva Júnior e Valmir Araújo: “(...)Para legitimar suas falas esses mandatos tiveram que formatar seu discurso eleitoral em uma doxa comum inteligível ao público, tornando estes estereótipos uma marca institucional da enunciação, na qual está ancorada a figura de legitimidade dos enunciadores(...) (3).
As candidaturas coletivas e, se bem sucedidos, os mandatos coletivos, são, portanto, espaços muito importantes de participação política de atores sociais frequentemente silenciados. É uma militância organizada, forte, consciente, bastante engajada na superação de graves expressões implicadas pela Luta de Classes. Nesse sentido esses coletivos eleitorais ocupam um espaço eleitoral que é bem distinto do espaço ocupado pelos partidos políticos eleitoralmente consolidados (aqueles que tem representação congressual). Esses partidos políticos consolidados, cada vez mais, se aproximam de uma empresa eleitoral.
A geleia geral eleitoral não nasce com as candidaturas coletivas
A pulverização partidária (segundo o TSE são 33 partidos com registro e 78 partidos em processo de formação) ajuda bastante na geleia geral eleitoral. Não que um número elevado de partidos políticos possa significar problema, mas fundamentalmente porque os muitos partidos não se esforçam em sustentar um funcionamento orgânico e uma pauta ideológica capaz de distingui-los claramente. A geleia geral, além de despolitizar as eleições, abre caminho para candidaturas e partidos políticos transformarem os pleitos em uma espécie de “mercado do voto”. Candidaturas e partidos recebem um cnpj eleitoral (regre legal) e terminam por se comportar simplesmente como isso: um consórcio de disputa do voto (4).
As candidaturas coletivas podem tentar se posicionar em outro campo. Quer dizer, os movimentos promovidos por essas candidaturas coletivas têm uma capacidade de repor o sentido das eleições, devolver ao pleito seu sentido mais político e menos mercadológico.
Se conseguirem isso as candidaturas coletivas já estariam colaborando bem com a política. Mas, quando e se as candidaturas coletivas mergulham nas expressões sociais específicas correm o risco de criar um “novo mercado”. O desligamento, quando ocorre, das pautas que mobilizam os ativistas que militam nas campanhas e as relações econômicas e sociais que configuram as condições de luta política tem forte potencial alienador. Quer dizer, defender as pautas sociais sem as mediações implicadas pela Luta de Classes pode empurrar a militância para um outro tipo de disputa mercadológica. Não exatamente o mercado dos cnpj’s eleitorais, mas uma espécie de alienação que relativiza os partidos e os aspectos ideológicos da luta política.
Político é tudo igual?
Lênin sustentou que os partidos proletários precisam ser capazes de estabelecer alianças e exercer um papel de vanguarda nas transformações sociais. Mas a política de alianças leninistas jamais deixou de observar o que era mais importante: a superação da exploração proletária. Em carta à Redacção do Pravda lemos o seguinte registro de Lênin:
“(...)Um socialista-revolucionário de esquerda (se não me engano foi o camarada Feofiláktov) fez-me então a seguinte pergunta:
«E como procederão os bolcheviques se na Assembleia Constituinte os camponeses quiserem aprovar uma lei sobre o usufruto igualitário da terra, a burguesia se pronunciar contra os camponeses e a decisão depender dos bolcheviques?»
Respondi: a aliança dos operários e dos camponeses trabalhadores e explorados obrigará o partido do proletariado em tal caso, quando a causa do socialismo estiver assegurada pela introdução do controlo operário, pela nacionalização dos bancos, etc., a votar pelos camponeses contra a burguesia. Em minha opinião, os bolcheviques terão então direito na votação de apresentar uma sua declaração especial, a ressalvar o seu desacordo, etc., mas nesse caso abster-se significaria trair os seus aliados na luta pelo socialismo por causa de uma divergência parcial com eles. (5)
Um quadro de alianças políticas é algo bastante importante nas disputas eleitorais, em particular, e nas disputas políticas, em geral. Mas, o horizonte de pertencimento de Classe não pode ser perdido nesse quadro de alianças. O que acompanhamos nos pleitos eleitorais, no entanto, é uma verdadeira inconsistência política das alianças (notadamente nas eleições locais). Essa perda de identidade reforça os elementos de fragilização dos partidos e a facilitação de um cenário eleitoral em que as legendas são meros cnpj’s eleitorais (6).
As candidaturas coletivas, quando e se não observam a qualidade do arco de alianças que costuram, antes de promover democratização da política e fortalecimento da autonomia dos sujeitos sociais, opera no sentido contrário: termina por reforçar a imagem de que o exercício ´da cidadania política não tem qualquer diferença significativa entre os muitos campos em disputa e que a as eleições reúnem pessoas que são, no limite, a mesma coisa.
Embrulho criativo num conteúdo prosaico
As candidaturas coletivas e os mandatos coletivos podem parecer com formas criativas de exercício da cidadania, mas, em muitos graus, reproduz hábitos e velhas configurações políticas. Não parece ser possível associação mecânica entre uma forma coletiva de representação e uma consequente ação política mais libertária.
A literatura política (trabalhos apresentados por Cientistas Sociais, Comunicólogos, Linguistas, Analistas de Redes Sociais, etc) parece convergir bastante em certos aspectos. Muitos trabalhos de pesquisa têm se debruçado sobre as campanhas eleitorais e suas performances: alcance; capacidade de mobilização; grau e tipo de trocas entre usuários de redes sociais de candidaturas. Algumas hipóteses podem ser identificadas e confirmadas pelas pesquisas recentes. O trabalho de Marcelo Alves sugere algumas conclusões possíveis.
Hipótese 1: Os canais oficiais dos candidatos são responsáveis por uma pequena parte das mensagens que circulam sobre o pleito eleitoral. Por outro lado, os militantes atuam em torno e a partir dos candidatos como replicadores e “coprodutores” dos conteúdos eleitorais, o que forma um corpo coletivo de mobilização eleitoral, as “Redes de Campanha”.
Hipótese 2: Há uma especialização da militância eleitoral nas mídias sociais, tendo em vista que um grupo reduzido de maior comprometimento produz grande quantidade de mensagens.
Hipótese 3: Apesar de possuir pouco alcance em relação ao volume total de conteúdos produzidos, o perfil dos candidatos é central, pois define o tom e estratégias discursivas da campanha a serem replicados e apropriados pelos militantes.
Hipótese 4: A militância dos engajados nas “redes de campanha” partilha códigos semânticos comuns sobre o pleito eleitoral.
Hipótese 5: As “Redes de Campanha” possuem fontes de informação e práticas distintas entre si, sugerindo baixo grau de institucionalização. (7)
Uma primeira hipótese que as pesquisas permitem sustentar trata da capacidade de mobilização das candidaturas. Usando as muitas redes sociais como métrica desse indicador o discurso frequente nos trabalhos acadêmicos sugere que candidaturas são capazes de aglutinar “Redes de Campanha”, que apesar de úteis como captadoras de voto não são capazes de gerar associativismo partidário (8). Com as candidaturas coletivas não é diferente. Basta uma navegação pelas redes sociais e pelos portais dessas candidaturas para confirmarmos um forte caráter de associativismo que não privilegia os partidos.
Trata-se de uma escolha, legítima e política. Não assentar, exclusivamente, as suas práticas políticas aos espaços partidários de maneira alguma diminui a experiência desses mandatos, ditos coletivos. Mas, o que interessa aqui é notar que parece existir um distanciamento entre o exercício desses mandatos e os partidos políticos que serviram de legenda às candidaturas.
Outra hipótese fortalecida pelos estudos sobre as eleições recentes é a de que a militância que forma as tais “Redes de Campanha” conta com agentes bem especializados. Essas pessoas, no entanto, não são necessariamente correligionários de um partido. Celebridades, profissionais de marketing eleitoral, lideranças religiosas e comunitárias estão entre esses militantes eleitorais que concentram ações de campanha. Alguns trabalhos resolveram chamar de “Embaixadores de Campanha”. Os “Embaixadores” são ativistas, que muitas vezes não tem sequer filiação partidária, ou, quando filiados, não encaminham sua militância a partir das estruturas orgânicas partidárias (9).
Os ativistas dessas candidaturas coletivas são militantes das causas que compõem o eixo político das campanhas, mas que tem pouco ou nenhum diálogo com os programas partidários. A principal crítica que as iniciativas coletivas apresentam é que, mesmo dentro dos seus partidos, os espaços de atuação política se apresentam reduzidos, algumas vezes reproduzindo silenciamentos e preconceitos que o coletivo mobilizado nas campanhas coletivas pretende enfrentar. Mas, um caráter suprapartidário ou formas de implementar campanhas eleitorais e mandatos representativos que ignoram os partidos não vão enfrentar os dilemas e paradoxos das organizações.
As pesquisas sobre política e eleição também registram que o perfil dos candidatos/representantes é central, pois define o tom e estratégias discursivas da campanha a serem replicados e apropriados pelos militantes. A militância dos engajados nas “redes de campanha” partilha códigos semânticos comuns sobre o pleito eleitoral. Quer dizer, as campanhas e os mandatos coletivos não conseguem dispensar o papel central exercido pelas lideranças.
Na literatura política marxista a formação e a capacitação de lideranças partidárias/política assumem papel central. A vanguarda do partido (Lênin) e o intelectual orgânico (Gramsci) são lideranças políticas. A distinção fundamental em relação ao que observamos entre as categorias marxistas e as experiências de campanha/mandatos coletivos é que desaparece a centralidade dos partidos políticos. Enquanto para os autores marxistas, notadamente em Lênin e Gramsci, o partido revolucionário é “pedra de toque” da ação política, as experiências de campanha/mandato coletivo anima uma espécie de liderança política que, se não dispensa o partido político, sustenta a impressão de que a defesa de suas pautas pode ser implementada à margem dos partidos.
Menos consciência de classe e menos partido
A coletânea de hipóteses que a literatura sobre campanhas e mandatos coletivos parece sustentar não indica, de forma alguma, descompromisso das pessoas e dos militantes que decidem se organizar a partir dessas formas de participação política. O que fica posto, no entanto, é que uma parcela importante dessas experiências parece inovar bastante na forma de fazer política e na forma de engajar as pessoas para a participação política. Até aí, um frescor muito bem-vindo.
Os limites dessas experiências começam a se fazer sentir na medida em que as experiências não conseguem desempenhar um papel de fortalecimento dos partidos políticos, chegando ao extremo de fragilizar os partidos. Também encontram um limite crucial ao tratar expressões sociais resultantes de uma realidade de exploração de classes sem introduzir na sua pauta de reflexões e ação política a questão central da Luta de Classes.
Um relatório analítico que se debruçou sobre muitas experiências de mandatos coletivos no Brasil (e no mundo) elenca uma série de resultados que aguçam as muitas oportunidades incluídas nessas novas formas de ação política, mas, alertam para muitos limites que podem/precisam ser superados por essas experiências (10). Resume o relatório:
“(...)Após concluir este estudo, reforçamos a crença de que mandatos coletivos e compartilhados podem trazer alguns benefícios, tais como: controle social do processo legislativo, redução dos custos de campanha, maior capilaridade da campanha, aumento da pluralidade de interesses, propostas legislativas aprimoradas, visão política balanceada, inteligência coletiva a serviço da produção legislativa e fiscalização do poder executivo(...)”. “(...)Outro benefício potencial é o processo de educação política. Os depoimentos de legisladores que implementaram os mandatos coletivos e compartilhados são uníssonos na avaliação de que o cidadão, investido do papel de coparlamentar, aprende muito sobre democracia, legislação, administração pública, orçamento, política, ideologia.(...)” (pág 95)
O resultado proposto pelo relatório é bem consoante com outras pesquisas sobre democracia e participação política. Luciano Fedozzi coleciona farto material sobre os sentidos da experiência do Orçamento Participativo sobre a cultura política e a participação coletiva. O pesquisador chama atenção para as conquistas do Orçamento Participativo (OP), mas também alerta sobre suas limitações. Em um cenário de baixo associativismo, pouca participação coletiva nas questões de Estado e desmobilização popular, o Orçamento Participativo é mais que uma política pública de transparência e decisão horizontal dos investimentos públicos. É uma experiência de engajamento social dos participantes. Mas, orienta o pesquisador, as pessoas que participam dessa experiência não ganham consciência política pelo simples fato de participarem das decisões. O que se observa nas muitas investigações é que a participação coletiva no Orçamento Participativo tem pouca capacidade de impactar a consciência política dos participantes.
“(...)Se os dados analisados até agora demonstram de certa forma as percepções redistributivistas, participativas e de exercício da accountability na cultura dos participantes mais engajados no funcionamento do OP (como o são os delegados), vale destacar que revelam limites da cultura política predominante desse público, ante uma perspectiva mais crítica e transformadora da ordem social.(...)” (11)
Parece bastante claro que abrir espaços de participação política anima e engaja as pessoas. Não deixa de ser uma escola de cidadania e uma forma de estimular uma cultura política participativa e inclusiva. Mas as experiências das candidaturas/mandatos coletivos parecem intensificar também aspectos que precisam ser refletidos por quem trafega no campo progressista. A participação coletiva é muito bem-vinda, mas o trabalho político precisa também contemplar a consciência ideológica e uma perspectiva mais crítica e transformadora da ordem social.
O alerta é mais que justo. No relatório da RAPS, organizado por Secchi, fica bem patente como as experiências de mandatos anunciados como coletivos estão sob o risco grave de distanciamento dos partidos políticos, baixo nível de debate ideológico, pragmatismo legislativo e mesmo, alienação política. Lembrando que o relatório é produzido por instituições de defesa dessa experiência política, ainda assim podemos ler:
“(...)Todavia, também reconhecemos que mandatos compartilhados e coletivos pode enfrentar riscos, tais como: decisões coletivas ruins ou populistas, alto custo de obtenção e difusão de informações, conflitos entre os participantes, conflitos de interesse entre o mandatário e seu partido político. Outro risco associado é a dificuldade de construir blocos parlamentares coesos, uma vez que mandatos coletivos e compartilhados apontam para as bases eleitorais dos mandatários, afastando-os da obediência partidária. (pág, 96).
Quando as experiências de mandatos coletivos são sistematizadas, comparadas e analisadas, os elementos que mais chamam atenção são esses vinculados à fragilização do papel dos partidos políticos e a relativização da consciência crítica e de classe. Na síntese promovida pelo relatório da RAPS podemos notar
“(...)São mandatos compartilhados aqueles que adotam sistemática de votação, com distribuição de poder de voto de maneira individualizada para cada coparlamentar. Em geral, mandatos compartilhados primam pela pluralidade e heterogeneidade de um grupo médio a grande de coparlamentares (em geral superior a 100 pessoas), sem ambição de ser uma síntese da vontade da sociedade, mas também sem o viés de promover uma visão marcadamente ideológica. As decisões são tomadas em regra de maioria, por meio de debate e enquete geralmente mediado por tecnologia da informação e comunicação (aplicativo, website, redes sociais). São exemplos desse tipo de mandato o de Gabriel Azevedo (Belo Horizonte – MG), Ricardo Antonello (Joaçaba– SC), Felipe Rigoni (Espírito Santo), Eduardo Sallum (Tatuí – SP), Valmir Pardal (Torres – RS) e do vereador Maikon Costa (Florianópolis – SC). (págs, 89-90).
“(...)Mandatos coletivos são mandatos de tamanho reduzido de coparlamentares que em geral se conhecem por atuarem em causas sociais parecidas. O planejamento do tamanho e dos papéis é feito de maneira anterior às eleições, numa relação quase contratual e aproximada entre os participantes. Em geral, são campanhas e mandatos marcadamente identitários, sem a possibilidade de participação de pessoas estranhas ou que não compartilhem a mesma visão de mundo. As decisões são tomadas para toda a gestão do gabinete e do mandato por meio de deliberação. Exemplos que se enquadram nesses quesitos são o de Áurea Carolina, Cida Falabella e Bella Gonçalves no coletivo Muitas-Gabinetona (Belo Horizonte – MG), a Bancada Ativista liderada por Mônica Seixas (São Paulo), o Juntas em Pernambuco, liderado por Jô Cavalcante, e o mandato coletivo de Alto Paraíso de Goiás.(...)” (pág 90.)
As experiências são muito importantes por estimularem a participação coletiva, ampliarem a representatividade de setores silenciados e incluir atores políticos que enfrentam boicotes mesmo dentro de seus partidos. Mas são experiências que devem alertar a militância para os riscos de fragilização ainda maior dos partidos políticos e, principalmente, devem alertar a militância para o exercício crítico mais amplo que alcance, não apenas a construção de mitigações urgentes e legítimas das muitas vulnerabilidades que flagelam setores populares, mas que seja capaz de exercer o espírito crítico e o fortalecimento da consciência ideológica e de uma perspectiva mais crítica e transformadora da ordem social.
Sem esses alertas as experiências de mandatos coletivos colaboram com a cultura política, incluem pessoas na vida pública, mas não avançam na consciência de classe e nem contribuem para o fortalecimento e a democratização dos partidos políticos.
Mais consciência de classe e mais partido
Uma resposta aos alertas levantados na análise das experiências dos mandatos coletivos seria uma atuação que combinasse a capacidade aglutinadora dessas ações políticas e o fortalecimento das instâncias partidárias. Não parece tarefa simples, sobretudo quando os partidos políticos (mesmo os mais progressistas) estão gravissimamente questionados por uma parcela expressiva da militância e mesmo desacreditados por significativas parcelas da sociedade.
O Diário da Causa Operária publica duríssima ofensiva contra essas experiências de mandato coletivo. Na publicação da Edição nº 6093 – sexta-feira – 07/08/2020 o editorial trata as experiências de mandato coletivo como: “(...)“mandatos coletivos” para fazer demagogia eleitoral(...)” (12).
Com algum esforço, talvez seja possível elencar alguns pontos trazidos pelo Diário Causa Operária e tentar imaginar aspectos das experiências de mandatos coletivos que realmente possam ser debatidos, aprimorados. O texto questiona a inexistência de programas partidários claros e democraticamente construídos pela militância.
"(...)A esquerda pequeno burguesa dentro do PCdoB, PDT, PSOL e PT lançam dezenas de mandatos coletivos que não apresentam nenhuma proposta inovadora e somente reforçam que os partidos da esquerda não possuem nenhum programa a ser seguidos pelos seus candidatos.(...)"
Em que pese a generalização, a provocação questiona um ponto basilar. Se os partidos tem pouca capacidade de discutir programas de intervenção política essa dificuldade não se supera simplesmente pela coletivização de candidaturas ou mandatos. Pior, se as experiências de candidaturas e mandatos coletivos não tomarem como tarefa o pesado desafio de melhorar os partidos políticos e construírem as condições para que as suas candidaturas e mandatos coletivos estejam bem ancorados num programa, elaborado no âmbito de uma renovada democracia partidária.
Talvez seja injusto exigir que a militância envolvida nas experiências de candidaturas/mandatos coletivos pensem também no fortalecimento de seus partidos políticos ou pensem em ações de fortalecimento ideológico das pessoas impactadas pela sua movimentação. Mas não parece ser descabido alertar para o risco de algumas dessas experiências colaborarem com a fragilização partidária e com a alienação ideológica. No texto da Causa Operária aparece a afirmação definitiva:
"(...)os mandatos coletivos são apenas uma maneira de fazer demagogia nas eleições, mas que são a mesma forma de fazer política tradicional da burguesia, como outras modas eleitorais, como defesa do meio ambiente ou dos direitos dos animais(...)"
Aqui também a provocação parece extravasar o razoável, entre outras questões, por reduzir expressões sociais relevantes à mera condição de “moda eleitoral”. Superado o amargor da crítica encerrada no texto fica uma reflexão válida: alienação política e pureza revolucionária podem ser duas faces de um polígono político que ainda tem outras, como o pragmatismo eleitoral e a ignorância programática. Só pra citar algumas.
De fato, mais uma vez, é inegável que uma parte sensível das tais experiências de mandato coletivo esbarram no acirramento da fragilização partidária e não se apresentam como uma ação orientada à superação da alienação.
Há ainda a má fé, no caso extremo, como os parlamentares da bancada dos Lemman. Esses, claramente a serviço de uma ordem contraditória aos interesses de superação da ordem social exploratória. São engodos, claramente.
Mas também o texto da CAUSA tem uma pitada do purismo revolucionário. A questão é que não se faz revolução dentro do Estado. Então, não existe mandato representativo que opere a “revolução”, isso também é um engodo. Os mandatos coletivos ou não são importantes pra lutar por melhores políticas públicas e para ocupar espaços públicos que são estratégicos para a divulgação dos programas partidários. É importante a ocupação dos espaços de representação para intervir no lexo político, incorporando uma linguagem que seja inclusiva e emancipadora.
Ou, numa expressão de Gosta Esping-Andersen, “desmercadorizar” os sujeitos sociais (13). Ocorre que sem partidos conscientes e preparados todo mandato, pretensamente coletivo ou desbragadamente personalista, é mero instrumento de reforço da boa aparência da democracia burguesa.
Sem os partidos produzindo teoria, provocando consciência de classe, o que teremos é mais do mesmo. Então, ainda que a ocupação do Estado, ter um mandato, não seja uma missão revolucionária, faz toda diferença escolher entre um progressista bem intencionado ou um representante do pensamento revolucionário.
REFERÊNCIAS
1SECCHI, Leonardo, coord. Mandatos coletivos e compartilhados: inovação na representação legislativa no Brasil e no mundo. 2ª ed. Rev. Adriana Cestari Tayara Calina. São Paulo: Instituto Arapyaú de Educação e Desenvolvimento Sustentável, 2019.
2 RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2017. Pág 29.
3 Raça e Gênero nas Eleições: os Discursos dos Mandatos Coletivos Durante 2018. 42º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Universidade Federal do Pará, de 2 a 7/9 de 2019.
4 (MANCUSO, Wagner Pralon. Investimento eleitoral no Brasil: balanço da literatura (2001–2012) e agenda de pesquisa. Rev. Sociol. Polit., Curitiba , v. 23, n. 54, p. 155-183, June 2015.); (Campos, M.M. 2009. Democracia, partidos e eleições: os custos do sistema partidário-eleitoral no Brasil. Tese de Doutorado. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais.); (Grandes empresários e sucesso eleitoral nas eleições de 2002, 2006 e 2010. in 35º Encontro da Anpocs. 2011. Caxambu.
5 V. I. Lênin. Obras Escolhidas em três tomos, Edições "Avante!", 1977, t2, pp 426-427.
6 DANTAS, Humberto. Coligações em eleições majoritárias municipais: a lógica do alinhamento dos partidos políticos brasileiros nas disputas de 2000 e 2004. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.
7 Adaptado de: Alves, Marcelo. Redes de campanha na eleição do Rio de Janeiro em 2016. Revista Compolítica; Rio de Janeiro Vol. 7, Ed. 2, Jan 1, 2017: 87-120.
8 (BRAGA, S.; CARLOMAGNO, M. As pessoas interagem com os políticos nas Mídias Sociais? Padrões de interação no Facebook e seus determinantes nas eleições estaduais brasileiras de 2014. In: Encontro Anual da COMPÓS, 23. Belém, 2014. Anais da 23a Compós, 1:1-1, 7, 2014.) e (ITUASSU, A.; LIFSCHITZ, S. Opinião pública e comunicação política em #Eleições2014: uma análise preliminar. Artigo apresentado no GT de Comunicação e Política da Compós, 2015.)
9 SCARROW, S. E. Multi-Speed Membership Parties: Evidence and Implications. In: Contemporary Meanings of Party Membership”, ECPR Joint Sessions of Workshops, Salamanca, Spain. 2014. p. 1-30, 2014.); (STROMER-GALLEY, Jennifer. Presidential campaigning in the Internet age. Oxford University Press, 2014.
10 SECCHI, Leonardo. (ORG). MANDATOS COLETIVOS E COMPARTILHADOS: Desafios e possibilidades para a representação legislativa no século XXI. Rede de Ação Política pela Sustentabilidade – RAPS. 2019. Disponível em : www.raps.org.br/2020/wp-content/uploads/2019/11/mandatos_v5.pdf
11 FEDOZZI, Luciano. Cultura política e Orçamento Participativo. Cadernos Metrópole, São Paulo, v. 11, n. 22, pp. 385-414, jul/dez 2009. pág 392.
12 Disponível em: https://www.causaoperaria.org.br/mandato-coletivo-e-demagogia-eleitoral/
13 ESPING-ANDERSEN, Gösta. (1995), O futuro do Welfare State na nova ordem mundial. Lua Nova, 1996, no.35, p.73-111.
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