Por Salete Maria, advogada e professora.
Muito se fala sobre o papel dos sindicatos na luta em defesa dos direitos da classe trabalhadora. E, sem dúvida, este papel é de suma importância, pois sem a organização da classe que vive do trabalho e sem as históricas batalhas em torno dos seus mais elementares direitos, nenhuma conquista seria possível neste campo, haja vista que, mesmo com tantos esforços históricos, estamos sempre expostos às ameaças e/ou à consumação de retrocessos que se manifestam através de perdas ou restrições de conquistas trabalhistas e previdenciários arduamente alcançadas, conforme tem ocorrido, sobretudo atualmente, em vários lugares do mundo e, em especial, no Brasil e no estado da Bahia, por exemplo.
Em virtude do exposto, o sindicalismo ainda se faz extremamente necessário no mundo inteiro, afinal, enquanto houver um sistema econômico e político que coloque o lucro como prioridade e as riquezas sigam concentradas em poucas mãos, em detrimento dos direitos e da vida daqueles e daquelas que produzem todos os bens, mas não usufruem do progresso e/ou desenvolvimento pleno, há de haver organização laboral e lutas constantes contra este tipo de coisa e a favor de melhores condições de vida e de trabalho para homens e mulheres que, com seus esforços, seu suor, sua inteligência, seu labor, constroem esta e outras nações. Eis porque, ao longo da história da humanidade, a organização e as lutas da classe trabalhadora se fizeram imprescindíveis, haja vista que se constituíram e se fortaleceram, como sabemos, a partir da construção e consolidação de uma firme e necessária consciência de classe.
Apesar disto, vale destacar que a classe trabalhadora, isto é, o conjunto das pessoas que laboram nos mais variados setores da vida social, não é constituída unicamente por homens, mas por mulheres também; e esta constatação exige um esforço no sentido de observar as necessidades, especificidades e demandas femininas, além de jamais olvidar que nem os homens e nem as mulheres são idênticas entre si, pois são marcadas/os por fatores outros, como a raça, a etnia, a cultura, a religiosidade, a territorialidade, etc. Destarte, para além de uma consciência de classe, faz-se necessário construir/estimular uma consciência de gênero e esta precisa estar articulada com outros aspectos da diversidade humana. Assim sendo, do mesmo modo que o despertar da consciência de classe foi estimulado pelas associações de trabalhadores, mediante reflexões, debates, cursos de formação, eventos, etc, se faz importante realizar, permanentemente, todo um trabalho em torno da construção da consciência de gênero, isto é, da percepção de que existem não apenas diferenças biológicas, mas, sobretudo, desigualdades sociais, entre homens e mulheres e que estas, ao serem construídas cultural e socialmente, geram muitas assimetrias, muitas injustiças decorrentes das relações de exploração, opressão e desvalorização das pessoas do gênero feminino e, por isso mesmo, precisam ser admitidas, discutidas e, principalmente, transformadas, inclusive no mundo sindical.
Assim, é imprescindível que todo e qualquer sindicato, independente da categoria profissional que represente, tome para si a árdua, porém indeclinável, tarefa de desnaturalizar as relações de exploração, subordinação e desvalorização do gênero feminino, assim como dos trabalhos realizados pelas mulheres e os lugares que as mesmas ocupam na família, na sociedade em geral, inclusive no âmbito da luta sindical.
Porém, quando se trata de consciência de gênero, obviamente que não se está falando de uma consciência isolada, desagregada do contexto histórico, político, econômico ou de outros aspectos identitários dos sujeitos, pois uma consciência de gênero que não dialogue com a complexidade social, bem como com as questões de classe, de raça, geração, etc, pode contribuir para a ocultação e/ou naturalização de outras formas de opressão no seio da próprio categoria, ou entre as próprias mulheres trabalhadoras. Eis porque os processos de formação sindical precisam se ocupar sempre e mais desta temática, investindo em debates que levem em conta os aspectos multidimensionais dos sujeitos, isto é, destacando que um/a trabalhador/a não é “apenas” um ser vinculado a uma classe social, mas um ser marcado por identidades (e desigualdades) múltiplas (leia-se: de gênero, raça/etnia, classe, geração, religiosidade, territorialidades, etc). E esta abordagem, na literatura feminista, ganha o nome de interseccionalidade, pois trabalha a necessidade de se observar os entrecruzamentos entre as múltiplas formas de opressão/exclusão/discriminação e os efeitos e impactos deletérios disto na realidade dos sujeitos. Isto tudo se aplica aos debates em torno da formulação de políticas públicas estatais, mas também pode e deve ser incorporado ao contexto das decisões e ações sindicais, dentre outras.
E, se neste momento estamos pondo ênfase está na temática da consciência de gênero, isto se dá porque esta nem sempre esteve ou está presente dos debates e, sobretudo, nas ações, notadamente aquelas concernentes à formação sindical e, quando está, nem sempre envolve reflexões sobre as masculinidades, por exemplo, ou sobre as possíveis ações em torno da construção de relações de gênero mais igualitárias, mais democráticas e mais prazerosas no âmbito do sindicalismo.
Ademais, é sabido que, em diversos sindicatos, notadamente naqueles em que há maior espaço para estes debates, cursos de formação e/ou organismos internos específicos sobre o tema, as questões em torno da consciência de gênero e das demandas femininas já estão devidamente colocadas, facilitando o enfrentamento do desafio que constitui a construção da paridade de gênero no âmbito das entidades de classe. De todo modo, as tarefas voltadas para a desnaturalização das desigualdades entre os gêneros, sobretudo no meio sindical, exigem, primeiramente, uma autopercepção do sujeito, que pode ser estimulado por meio de exercícios que favoreçam a auto-observação, o modo como lida com as mulheres em sua família, no seu entorno comunitário, no seu ambiente de trabalho, na sociedade como um todo e, obviamente, nas atividades e funções sindicais, onde, por mais consciente e crítico que seja, nem sempre esta criticidade é adotada para olhar os seus privilégios de gênero ou mesmo de raça, pois ninguém está isento da reprodução de estereótipos, de usufruto e/ou manutenção de privilégios, pois se formos a fundo, muito a fundo mesmo, nem mesmo as lideranças de esquerdas, dentre elas, as mais aguerridas, está imune à reprodução ou mesmo justificação/legitimação, tácita ou explícita, do status quo de gênero no seu das entidades por elas dirigidas. E esta não é uma acusação contra A ou B, é uma constatação que emerge dos diagnósticos realizados por estudos em diversas associações de classe e/ou entidades sindicais, dentro e fora do mundo jurídico.
Assim, faz-se necessário pontuar e reiterar que a consciência de gênero diz respeito a dar-se conta de que não é natural que as mulheres sejam as responsáveis exclusivas por certas atribuições e tarefas, notadamente as domésticas, tais como o cuidado da casa, das crianças, dos mais velhos, das pessoas doentes ou que tenham que ocupar sempre as mesmas funções em espaços laborais, políticos, sindicais, religiosos, etc. sobretudo quando estas atribuições envolvem justificativas que se relacionam com estereótipos de gênero, reforçando desigualdades e as mantendo longe das atividades de maior prestígio, poder e/ou visibilidade. Ademais, onde e quando as mulheres ganham alguma visibilidade, esta também se dá em lugar secundário, isto é, em funções coadjuvantes, como vice-presidentas, vice-diretoras, vice-coordenadoras, etc, e isto quando logram este lugar e não outras atribuições ainda mais flagrantemente secundárias, ou tidas como “auxiliares”, como o papel de suplentes, por exemplo.
Por tudo isso, o sindicalismo, enquanto movimento que luta por desnaturalizar formas de explorações e subordinações, precisa estar atento ao fato de que, estatisticamente, as mulheres recebem salários menores que os homens, mesmo diante de carga laboral idêntica, trabalham em condições precárias, além de estarem expostas ao assédio moral e sexual, dentro e fora das instituições laborais, políticas, religiosas ou sindicais, incluindo se aí os meios de transporte, a rua, os espaços de lazer, de educação, dentre outros.
Em fase do exposto, e para fins reflexivos, cabe sempre perguntar: os sindicatos, de um modo geral, tem se preocupado com as desigualdades de gênero no âmbito laboral como um todo? Tem buscado identificar e superar as desigualdades de gênero no seu próprio contexto, dentre de suas organizações? Tem buscado compreender, questionar e enfrentar a desigualdade de gênero no cotidiano sindical, sobretudo em tempos de composição de chapas, nas eleições, na realização de eventos, na condução de assembleias, na representação institucional, na elaboração de textos, etc? Qual tem sido a participação das mulheres no seio dos sindicatos? Quantas mulheres são presidentas, diretoras, coordenadoras e não apenas colaboradoras ou apoiadoras, assessoras de líderes que se revezam e/ou se perpetuam em lugares de destaque e maior prestígio ou poder? Afinal, se as mulheres são metade da população e, em algumas carreiras, são maioria dos membros, qual tem sido a proporção de sua representatividade? E mesmo entre as mulheres, qual tem sido a proporção da representatividade de mulheres que sem encontram em posições de maior desigualdade ou vulnerabilidade social, tais como negras, indígenas, lésbicas, trans, idosas, com deficiência, etc?
Para enfrentar estas e outras questões, faz-se necessário abrir o debate e, de modo franco e, preferencialmente, fraterno, dialogar sobre isto, fomentando, se for o caso, pesquisas e estudos sobre o tema, promovendo eventos e até mesmo premiando projetos ou manifestações artísticas que adotem tal perspectiva, mediante análises profundas sobre o acesso das mulheres ao trabalho formal e remunerado, sobre as suas atribuições, dentro e fora do mundo privado, sobre a falta de reconhecimento social, sobre a luta pelos direitos mais elementares, sobre a qualidade de vida das mesmas, sobre as incertezas quanto à aposentadoria, sobre sua inserção na luta sindical, sobre o seu lugar no âmbito do sindicalismo, sobre suas especificidades enquanto grupo, etc. E tudo isso não pode ser feito sem que haja uma reflexão sincera, teoricamente orientada, sobre conceitos como divisão sexual do trabalho, subordinação, opressão, desvalorização e exclusão feminina das diversas esferas sociais, mas, sobretudo, dos espaços de poder e decisão, além da noção de teto de cristão, brecha laboral, dentre outros.
Quem sabe um caminho para se começar a pensar, ou para se aprofundar mais concretamente sobre isto, seria cada sindicato começar a olhar para sua própria história, para sua própria trajetória, sistematizando registros, inclusive imagéticos, e visibilizando o seu caminhar para que esta história seja conhecida, contada, refletida e transformada? Quem sabe a construção, a partir da memória das mulheres que passaram ou que ainda se encontram na organização sindical abra caminho para novas e mais democráticas experiências? Afinal, isto possibilitaria a cada entidade de classe perceber o quanto já avançou na luta pela igualdade de gênero interna corporis e o tamanho dos desafios que ainda estão postos e que precisam ser assumidos enquanto compromisso e enquanto política institucional, até porque, é sempre mais difícil transformar o mundo ao nosso redor sem nos conhecermos primeiro, sem percebermos o tamanho das nossas fraquezas e das nossas fortalezas internas. E isto vale tanto para seres humanos como para instituições em geral, inclusive as sindicais.
Artigo publicado originalmente em https://sintaj.org/artigo/desafios-do-sindicalismo-frente-a-desigualdade-de-genero/
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