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O "passa fora" nas forças imperialistas no Afeganistão

O povo afegão entre a exploração capitalista e a opressão fundamentalista.


Por Peterson Pacheco, cientista social


Nem o Afeganistão, como território do Oriente, menos ainda seu povo multicultural e fortemente diversificado, são resultado de míseros 50 anos de história.

Bem pelo contrário, a tragédia contra os povos afegãos, que observamos por conta da “retomada” do poder pelos Talibãs, ocupa um território que tem interesse estratégico milenar. Ali se engalfinhavam britânicos, russos e chineses, numa disputa nem sempre velada pelos pontos estratégicos das rotas de comércio que integravam a Rota da Seda.

Quem diria que um dos desfechos no Afeganistão seria esse atabalhoado “passa fora” tomado pelas forças de ocupação. No processo em que imperou a farsa da segurança interna; a sustentação de um Estado cleptocrático; uma ocupação econômica imperialista; uma ação militar que era pródiga em violência e decrépita em inteligência jamais deixaram espaço para outra alternativa senão a tragédia contra a dignidade dos povos afegãos.

Apenas em meados da década de 1930 o Afeganistão registra certo grau de estabilidade, com a ascensão da monarquia dirigida por Mohammed Zahir Shah. Já no final dos anos de 1960, início da década de 1970 a política interna do Afeganistão retoma sérias instabilidades, muito em função do empobrecimento da população e de uma agudização do despotismo da monarquia Muhamadzai.

Em 1973, com apoio de setores políticos mais progressistas do Afeganistão, Mohammed Daoud Khan, lidera um processo de deposição do antigo rei, seu primo, Mohammed Zahir Shah. Poucos anos mais tarde, em 1978, um movimento de inclinação comunista – o PDPA – derruba Daoud Khan, período consagrado como Revolução de Saur, e implementa uma série de políticas públicas que visavam a emancipação da população afegã. Uma parte dos revolucionários do PDPA reivindicavam uma revolução feminista, comunista e libertária.




A Revolução de Saur, no Afeganistão ocorreu ao fim de abril de 1978. Proclamou um estado laico e empreendeu a reforma agrária. Também proibiram a usura, fizeram várias declarações sobre direitos das mulheres, igualdade entre os sexos e introduziram as mulheres na vida política. (https://www.facebook.com/1721493491428696/posts/3096420120602686/)


Em resposta à Revolução de Saur se levantaram toda sorte de resistências: i)crises internas no PDPA com a luta fratricida entre comunistas, radicais nacionalistas, social-democratas; ii)China apreensiva com as suas fronteiras e a questão Xinjiang; iii)o campo conservador e islâmico, que passou a ser organizado e instigado pela Arábia Saudita e pelos EUA, representados sobretudo pelos Mujahidins. Os Mujahidins são precisamente a origem da organização Talibã.

Não tardou e o estado laico e progressista afegão começa a ruir. Ainda no final de 1979 a Rússia inicia um processo de ocupação militar no Afeganistão. Do começo da década de 1980 até o início da retirada das tropas soviéticas, em 1988, o Afeganistão foi um dos palcos mais dramáticos da Guerra Fria. A população afegã sofria com a guerra, a pobreza e a necessidade de se refugiar nos países vizinhos (que quase sempre também apresentavam períodos de aguda instabilidade e grave crise humanitária).

A dilaceração econômica e política no Afeganistão, o desaparecimento da União Soviética, a pacificação da questão Chinesa na região de Xinjiang vão construindo novos cenários que culminam em um absoluto abandono do Estado afegão. Não é sem motivo que toda sorte de grupos extremistas procura se refugiar nos territórios afegãos e instalam redes bastantes capilarizadas de treinamento e desenvolvimento de organizações de clivagens conservadoras, fundamentalistas e que alimentam profundo desprezo pelos signos ocidentais.

É essa a desculpa do governo Bush (filho) para expandir ao Afeganistão sua guerra de invasão, iniciada no Iraque. Sob o pretexto de combater o terrorismo e “vingar” o ataque sofrido em 2001, os Estados Unidos e seus aliados dizimam toda sorte de organização política e social afegã (partidos, organizações sociais, empresas, etc.) criando espaço para um simulacro de Estado ocupado por representantes do poder estadunidense e garantidor da tomada imperialista de toda espécie de recursos do povo afegão.

O despreparo estadunidense e a falta de interesse em organizar o estado afegão são tão gritantes que a primeira estratégia dos aliados ocidentais foi impor, com a convincente e democrata força das armas, uma esdrúxula tentativa de retorno do antigo rei.


“(...)Soldados armados das forças internacionais e tropas afegãs ladeavam a estrada do aeroporto, e havia tanques e outros veículos blindados de sobreaviso. A segurança intensificada foi acompanhada da esperança de que o retorno do antigo rei consiga fazer o Afeganistão de hoje reencontrar um vínculo com a era relativamente pacífica de seu reinado, que durou 40 anos e terminou em 1973, além de aliviar as memórias do período assustador que se seguiu a sua partida.(...)” (Folha de São Paulo, sexta-feira, 19 de Abril de 2002. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft1904200219.htm).


Enquanto os E.U.A. e seus aliados simulavam um ambiente seguro no Afeganistão, no mundo real uma sucessão de tragédias se processavam.

Na direção do Estado afegão os invasores legitimavam todo tipo de rapinagem e corrupção. As, assim chamadas, lideranças, todas referendadas por Washington, não passavam de oportunistas que sugavam recursos do Estado sem produzir qualquer estruturação de segurança ou desenvolvimento ao povo afegão.

Sobre a segurança e a pobreza impostas pelos invasores (E.U.A. e aliados) e seus representantes no estado (Ashraf Ghani e Abdullah Abdullah) contra o povo afegão, a ACNUR (Agência da ONU para Refugiados) denunciava já no início do ano de 2021 uma escalada de opressões e a fuga de afegãos em direção aos campos de refugiados.


A Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) está extremamente preocupada com a rápida escalada do conflito no Afeganistão. Em meio aos confrontos intensificados na província de Nimruz, no sudoeste do país, quase 200 refugiados afegãos foram forçados a fugir para a República Islâmica do Irã no fim de semana. Muitos outros civis afegãos podem ficar presos se não conseguirem escapar da situação altamente instável. Estima-se que desde o início do ano quase 400 mil afegãos foram deslocados internamente no país – cerca de 244 mil desde maio. O ACNUR apela às autoridades iranianas que mantenham a passagem da fronteira de Milak aberta, considerando a intensificação da crise humanitária no Afeganistão. Não fazer isso pode colocar milhares de vidas em risco. (UNHCR/ACNUR, Home, 10 Agosto de 2021. Disponível em: https://www.acnur.org/portugues/2021/08/10/apos-aumento-da-violencia-refugiados-afegaos-chegam-ao-ira-2/).


Em contraste à situação de pobreza e insegurança da população, estadunidenses e os corruptos mantidos pelos aliados na chefia do estado no Afeganistão simulavam uma situação de normalidade e perfeita democracia. Mas, no mundo real, o que se processava era o exato oposto: controle imperialista, executado por agentes privados multinacionais, das riquezas do Afeganistão, transformadas em commodities; noutra ponta, inédita crescente de corrupção e pilhagem praticada pelos chefes do Estado mantidos pelos estadunidenses.


“(...)Era ainda o final de 2018 e a briga pelo poder no Afeganistão entre forças democráticas era intensa. Num dos hotéis mais luxuosos de Genebra, Abdullah Abdullah estava hospedado em uma suíte presidencial. Tratava-se do chefe do governo de Cabul, que me recebeu para uma conversa de uma hora num quarto cuja diária ultrapassava a marca de 12 mil dólares.”(...) Para mais de 50% das pessoas, aquela noite exigiria mais de dez anos. O Afeganistão continua sendo um dos países mais pobres do mundo, apesar dos trilhões despejados pelo Ocidente. Abdullah vestia um terno impecável, com uma gravata rosa de seda. Ao seu lado, num verdadeiro apartamento de luxo, estava uma mesa repleta de comida, enquanto seu staff e membros da delegação circulavam com os modelos mais modernos de celulares e laptops. A desconexão com a realidade de seu próprio país não se limitava ao local e nem ao luxo oferecido ao chefe do governo. Ao começar a explicar a situação de seu governo, o discurso era de que existia espaço para uma participação do Taleban na reconstrução do país. Mas na aposta de que iria abrir mão da violência(...)” (Notícias UOL, 15 de Agosto de 2021, coluna de Jamil Chade. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2021/08/15/no-luxo-suico-lider-afegao-mostrava-desconexao-com-realidade.htm).


As autoridades afegãs; gente corrupta, covarde e protegida pelos estadunidenses e seus aliados, protagonizaram inclusive o vexatório evento de uma fuga tresloucada da capital, Cabul, deixando para trás uma população refém do ódio fundamentalista Talibã e carregando como pode um resto de dinheiro ainda guardado nos cofres dos palácios.


A embaixada da Rússia em Cabul, capital do Afeganistão, disse hoje que o presidente do país, Ashraf Ghani, fugiu do território com quatro carros e um helicóptero cheio de dinheiro, mas uma parte do valor ficou no asfalto, pois não caberia tudo na aeronave, segundo a agência estatal russa RIA. (Disponível em : https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2021/08/16/russia-presidente-afeganistao-dinheiro.htm)


É preciso considerar que o controverso processo de invasão ao Afeganistão foi se transformando ao passar do tempo, deixando de ser uma linear ocupação pela força bélica e cedendo espaços também à complexas redes de relacionamento entre ativistas e organizações econômicas, entidades diplomáticas, organizações humanitárias, grupos associativos. Muito mais do que palco exclusivo e inerte de uma ocupação militar, no Afeganistão vão se descortinando outras resistências e uma tecitura geopolítica muitíssimo cheia de nuances e que sempre desafiou a ganância brutalizada das pretensões imperialistas e as limitações dos gerentes militares fixados na guerra e nos espólios (quase sempre ilegítimos) retirados dela. Uma parte do fracasso observado hoje no Afeganistão se explica pela aguda alienação da inteligência estadunidense e os efeitos deletérios da sua intervenção tão simplista e corsária. Grandes lideranças de Washington declararam, bem antes da tomada de Cabul, que mal compreendiam o cipoal de problemas em que estavam inseridos.


“(...)Em 2019, o Washington Post publicou um relatório interno de 2.000 páginas encomendado pelo governo federal dos EUA para anatomizar os fracassos de sua guerra mais longa: “The Afeghanistan Papers”. Foi baseado em uma série de entrevistas com generais dos EUA (aposentados e em serviço), conselheiros políticos, diplomatas, trabalhadores humanitários e assim por diante. A avaliação combinada deles foi condenatória. O general Douglas Lute, o “czar da guerra afegã” sob Bush e Obama, confessou que “não tínhamos uma compreensão fundamental do Afeganistão – não sabíamos o que estávamos fazendo… Não tínhamos a menor noção do que éramos, estamos assumindo… Se o povo estadunidense soubesse a magnitude dessa disfunção.”(...)”


“(...)Donald Rumsfeld expressou o mesmo sentimento em 2003: “Não tenho visibilidade de quem são os bandidos no Afeganistão ou no Iraque”, escreveu ele. “Eu li todas as informações da comunidade e parece que sabemos muito, mas, na verdade, quando você pressiona, descobre que não temos nada que possa ser acionado. Lamentavelmente, somos deficientes em inteligência humana.”(...)”. (Tariq Ali: Debacle no Afeganistão, publicado em 16 de Agosto de 2021. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2021/08/16/tariq-ali-debacle-no-afeganistao/).


Em paralelo, igualmente trágico, os invasores ocidentais e seus aliados, exploravam economicamente os recursos do país, pagando sem controvérsia as propinas exigidas pelos grupos Talibãs que exerciam controle real sobre o território. A mesma ocupação imperialista que proporcionava a corrupção abocanhada pelos políticos sustentados por Washington fez com que o Talibã conseguisse QUADRUPLICAR A SUA ARREDAÇÃO ANUAL, por meio da exigência de propina dos grupos econômicos instalados no território do país.


“(...)Segundo o Relatório Mundial sobre Drogas da ONU em 2020, o Afeganistão figura como o maior produtor de ópio do mundo -- 84% do total. As áreas de cultivo da papoula são dominadas pelo Talibã, que arrecada 10% sobre todas as fases de produção, incluindo também o refino e a distribuição. Outra fonte lucrativa e competitiva é a da extração de minério de ferro, mármore, cobre, ouro e zinco, que capta US$460 milhões por ano, com o mesmo modus operandi: a extorsão sobre os negócios em operação(...)”. “(...)Todos os setores da economia são tributados pelo Talibã pelo sistema de dízimo, o que lhe permite a autossuficiência(...)”. ”(...)Os doadores internacionais teriam contribuído com US$240 milhões por ano. São fundos oriundos de Paquistão, Irã, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Catar. Países do Golfo, segundo relatório de 2018 do Conselho de Segurança da ONU(...)”. (Portal G1, 16 de Agosto de 2021, Blog da Sandra Cohen. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/blog/sandra-cohen/post/2021/08/16/entenda-como-o-taliba-quadruplicou-sua-arrecadacao-em-cinco-anos.ghtml).


A farsa sustentada pelos países do Ocidente e seus aliados disseminavam a criminosa aparência de segurança no território afegão. Sob as cortinas da mentira e do oportunismo se fortaleciam a autonomia dos Talibãs e o enriquecimento dos grupos empresariais que ganhavam fortunas explorando os recursos daquele território.

Todo o processo de retirada das tropas estadunidenses e européias se fundavam muito mais na lógica da autonomia das relações econômicas que se desenvolviam no Afeganistão do que na conquista de qualquer espécie de segurança e possibilidade de autodeterminação da população afegã.

A dissimulação sempre foi tão aguda que a ação do Talibã na “retomada” do governo de Cabul jamais foi surpresa para a comunidade internacional. Países como a China, Rússia e Irã já recebem representantes do talibã desde 2020.


“(...)Representantes do grupo fundamentalista islâmico Talibã são recebidos pelo ministro de Relações Exteriores da China na cidade chinesa de Tianjin, 28 de julho(...)”. (Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/lacos-se-estreitam-china-recebe-delegacao-do-taliba/ ).


“(...)Beijing, Moscú y Teherán reaccionan con calma a toma de Kabul. La toma del Gobierno de Afganistán, ante la ofensiva militar del ejército de los talibanes ha provocado reacciones en las capitales de países vecinos; China, Rusia e Irán, se han manifestado a favor de una estabilización en el país de forma pacífica(...)”. (Disponível em: https://www.telesurtv.net/news/reacciones-toma-kabul-afganistan-moscu-beijing-teheran-20210816-0007.html).


A democracia, conceito tão cansativamente repetido por líderes ocidentais, jamais deixou de ser mera retórica. Em 20 anos de invasão, o imperialismo de estadunidenses e seus aliados forjaram um arremedo de Estado e sustentaram atividades econômicas que aprofundaram a pobreza e a exclusão na população ao mesmo tempo que produziam lucros para grupos empresariais e dividendos financeiros aos fundamentalistas do Talibã.

Não bastassem esses efeitos deletérios da hipocrisia e da exploração dos imperialistas estadunidenses e aliados, se gestou ali um banditismo político capitaneado por covardes que sumiram do Afeganistão na primeira oportunidade.

Crítico, ainda, é que 20 anos de invasão e exploração econômica não encheram o Talibã apenas de recursos financeiros. Duas décadas de provisões em armas de guerra de grande porte também se transformam, agora, em herança deixada pelos E.U.A. e seus aliados.


“(...)Neste final de semana, com a tomada da capital Cabul pelos Talibãs, os jihadistas tiveram acesso ao armamento de guerra do antigo governo, que caiu depois que seus líderes deixaram o país. Talebãs conseguiram invadir bases militares na cidade de Mazar-e-Sharif, onde capturaram, além do avião da empresa brasileira, helicópteros e drones fornecidos pelos americanos ao governo agora deposto(...)”. (Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/radar/um-super-tucano-da-embraer-nas-maos-de-talibas-no-afeganistao/).


“(...)Ao capturar bases policiais e militares, o Talibã adquiriu veículos blindados, Humvees e armas pesadas, bem como dezenas de caminhonetes onipresentes. Um fluxo constante de veículos capturados, muitos deles fornecidos pelos EUA, deixou a base de Kunduz na quarta-feira. Um dos rebeldes pode ser ouvido dizendo que as armas que apreenderam foram suficientes para todos os mujahideen no Afeganistão(...)” (Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2021/08/12/taliba-controla-10-capitais-regionais-do-afeganistao).


Dos tropeços, desastres e barbarismos impetrados pelos invasores no Afeganistão já temos uma boa mostra dos efeitos: gente se jogando na frente de aviões em movimento, desespero na busca por proteção, fuga desesperada de um mal que assusta tanto quanto os desmandos do convênio imperialista entre invasores e ladrões do bem público estatal. Que a comunidade internacional tenha a decência mínima de garantir ao menos o abrigo decente e humanitário para as milhares de pessoas que serão forçadas a migrar de suas terras.

Em meio ao caos político, covardia e hipocrisia imperialista, sofre um povo que vem sendo massacrado há décadas. Sofrem, sobretudo, crianças e mulheres afegãs, agora ainda mais reféns do maldito julgo fundamentalista.





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