Por Peterson Pacheco (Cientista Social)
Será que nos Interessa que a renda pública seja uma espécie de banco em que apenas os consórcios políticos são os correntistas?
Uma das facetas do orçamento público é ser marcado por forte complexidade. Vivemos um momento em que avanços imensos que foram positivados na carta constitucional de 1988 sofrem risco real de recrudescimento.
As garantias constitucionais, repercutidas na legislação que disciplina o ciclo fiscal-orçamentário, por exemplo, estão na mira da ação conservadora que pretende desvincular garantias orçamentárias de políticas públicas fundamentais.
Além disso experimentamos também o avanço de formas inadequadas, ineficientes de ingerência sobre a gestão orçamentária e financeira da renda pública.
O ataque mais recente foi a aprovação da PEC 2/2015. A proposta altera o artigo 166, §9º da Constituição. Basicamente dobra a fatia do orçamento (sai de 1,2% e vai para mais de 2% da Receita Corrente Líquida) que fica dedicada não para alguma política pública estruturada, fica amordaçada, presa, aferrada à fome irracional das emendas parlamentares.
Essa proposta, aliás, é uma reminiscência do pacote golpista idealizado pelo achacador Eduardo Cunha. Na época, 2015, a idéia era desmontar a capacidade do governo Dilma implementar as ações de saneamento fiscal, resposta à crise do crescimento do déficit público.
O que interessa aqui é destacar o tipo de ataque que a renda pública parece estar sujeita. A PEC 2/2015 é uma parte, pequena até, dessa ameaça. As emendas individuais, de bancada e coletivas deveriam simplesmente deixar de existir. O parlamento não deveria ter competência de gerir orçamento. O papel do parlamento, saudável, seria o de mediar a construção do orçamento púbico e garantir a fiscalização da sua execução fiscal.
Outro tipo de ataque, de ordem de grandeza destruidor, vem em forma de proposta formulada pelo responsável pela área econômica do atual executivo federal. Guedes prepara o texto de uma PEC que quebra todas as vinculações orçamentárias. É o fim do ciclo orçamentário como conhecemos hoje. E, grave, é o fim das garantias legais do pleno financiamento de políticas públicas e investimentos sociais estruturados.
No caso das emendas parlamentares as fragilidades são muitas: i)essas incursões sobre a renda pública acontecem de maneira desestruturada, sem coordenação entre uma determinada suplementação de dotação orçamentária sob responsabilidade do legislativo e o complexo programa de atividades performados na LOA. Aumentam a irracionalidade e a ineficiência dos investimentos públicos que deixam se organizar sob um planejamento e passam a obedecer ao velho fisiologismo fragmentado e sem visão de integralidade na formulação de uma política pública. Também, ii) alimentam uma fórmula que o debate da Ciência Política se debruça com certo consenso sobre sua ineficiência, a sustentação do presidencialismo de coalisão. Algumas indicações sobre o assunto:
LIMONGI, Fernando; FIGUEIREDO, Argelina. Processo orçamentário e comportamento legislativo: emendas individuais, apoio ao Executivo e programas de governo. Dados, vol. 48, p.737- 776, 2005.
PEREIRA, Carlos; MUELLER, Bernardo. comportamento estratégico em presidencialismo de coalizão: as relações entre executivo e legislativo na elaboração do orçamento brasileiro.
Dados, vol. 45, no 2, p. 265-301, 2002.
VASSELAI, Fabricio; MIGNOZZETTI, Umberto G. O efeito das emendas ao orçamento no comportamento parlamentar e a dimensão temporal: velhas teses, novos testes. Dados, Rio de Janeiro, v. 57, n. 3, p. 817-853, 2014.
No caso da desregulamentação orçamentária, ou, se preferirem, nas desvinculações de receitas a aniquilação é ainda mais potente. Estamos mesmo diante de uma ameaça que impacta todo ciclo orçamentário. A DRU integral, proposta anunciada por Paulo Guedes, coloca em cheque a aplicabilidade do PPA, torna a LOA praticamente letra morta e joga todo peso da ação orçamentária e financeira sob as balizas da LDO.
Hoje, graças ao trabalho imenso das organizações da sociedade civil nosso ciclo orçamentário reserva algumas garantias de financiamento de políticas públicas planejadas, estruturadas e coordenadas entre si. Além disso também viabiliza instrumentos de controle social sobre a renda pública. Ainda que esses instrumentos sejam inócuos diante da falta de formação para que os cidadãos conheçam e cobrem/utilizem essas ferramentas. PPA, LDO e LOA são instrumentos do ciclo orçamentário que podem ser mediados por desejável controle externo. Não o arremedo de controle representado pelos tribunais de contas.
A desvinculação total de receitas, combinada com a reserva de emenda parlamentar ao orçamento cria um quadro de aprisionamento da renda pública pelos consórcios políticos, muitas vezes divorciados dos interesses populares. No lugar de seguirmos um caminho de maior intervenção do controle social coletivo sobre a renda pública estamos marchando para o encarceramento da gestão orçamentária (a financeira é caixa preta desde sempre) nas mãos de consórcios políticos cada vez mais desacreditados e cada mais comprometidos com a própria sobrevivência.
Não interessa ao controle social da renda pública um ciclo orçamentário e fiscal totalmente desregulado. Muito menos interessa aos legítimos interesses políticos que o parlamento extrapole suas competência de mediador e fiscalizador da ação do executivo. Interessa sim, mais transparência sobre a gestão da renda pública. Interessa mais capacitação para que as pessoas influam mais no ciclo fiscal-orçamentário.
Interessa que a renda pública seja um ativo nas mãos da sociedade e não um banco público em que apenas os consórcios políticos são correntistas.
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