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Polícia Federal: memórias pouco sentimentais de uma instituição de Estado

Por Fábio José de Queiroz (História - URCA)



Neste artigo, partindo de conexões entre a história em seu sentido de uma onda mais longa e a história imediata, examino a ideia da polícia federal como uma instituição de Estado, judiciária e administrativa, pondo sob um crivo crítico o ponto de vista de analistas burgueses, que, em geral, manejam essa ideia quase à título de um bezerro sagrado.

A PF, o Estado e o governo

Quando Marx e Engels escreveram que o governo moderno é uma instituição para gerir os negócios da burguesia, muitos liberais torceram o nariz. Passados mais de 170 anos, os apóstolos da neutralidade do Estado moderno seguem reafirmando a sua tese capital e a máquina do Estado aparece, nessa óptica, como um conjunto de instituições isento e equânime.

Quando essa discussão se estende à polícia federal, os comentaristas liberais reforçam e refinam, ainda mais, os seus argumentos de suposta neutralidade, e esse órgão do aparelho estatal aparece em sua pureza mais absoluta. A conclusão lapidar é: a polícia federal é uma instituição de Estado e o debate finda aos pés dessa síntese republicana.

Até que ponto se deve aceitar a ideia - à primeira vista, irrestrita e irrefutável - de uma polícia judiciária, administrativa e republicana? Até que ponto a imagem de uma polícia que age com isenção e desembaraço, doa a quem doer, deve receber o aval que se atribui a uma posição inatacável?

Seguramente, não há dúvida de que as disputas no interior do governo, envolvendo o então ministro Sérgio Moro e o presidente Jair Bolsonaro, giraram em torno do controle da polícia federal. Não há dúvida, também, que na célebre reunião ministerial de 22 de abril, o que estava em questão era o comando da instituição. Do mesmo modo, não há por que duvidar que o presidente buscava proteger a si, aos parentes e aos amigos. Por fim, não há qualquer dificuldade em reconhecer de que ambos, Jair Bolsonaro e o ex-ministro Sérgio Moro, representam variantes autoritárias de poder, e por isso o domínio de uma instituição investigativa e de repressão, como a PF, é um problema-chave.

Ao longo de 1 ano e 4 meses, praticamente, Moro protegeu o presidente e o seu entorno familiar, conforme se pode observar no episódio das fake news, no qual não só o ministro da justiça socorreu o seu chefe imediato, mas, igualmente, contou com o beneplácito da ex-procuradora da república Raquel Dodge e do ministro Lewandowski. Acontece que os inumeráveis embustes contornando o clã, em larga escala, dificultava o trabalho do ex-chefe da lava-jato. Doutro lado, não pareceu prudente ao chefe do executivo ter o seu futuro nas mãos de um aliado com pretensões políticas, inclusive quanto ao posto presidencial.

E qual o papel da PF em todo esse processo? Por que o silêncio sepulcral de quase ano e meio? Será que a reconstrução e análise concreta dos fatos não evidenciam que a abstração de uma polícia quimicamente neutra se perde diante das exigências da luta política? Não é exatamente a luta política, expressão matizada da luta de classes, o que determina a autonomia e os limites da ação da polícia federal?


O que é a PF: um pouco de história

Na sua estratégia, a PF é um órgão que se estende além dos botões de camisa inteligentes, dos sensores de GPS e das microcâmeras. Modernamente, a sua história começa em 1944, na agonia do Estado Novo, e sua feição atual é antecedida do papel que desempenhou ao longo de 21 anos de ditadura bonapartista (1964-1985), quando, sob o comando do exército, atuou na repressão aos movimentos de resistência política à autocracia militar, e desenvolveu atividades na esfera da Divisão de Censura de Diversões Públicas.

Com a Constituição de 1988, os encargos correntes da Polícia Federal são mais satisfatoriamente definidos, embora a instituição, nos anos posteriores, seguisse como um apêndice da Central de Inteligência Americana (CIA), inclusive dependente dos EUA no terreno financeiro. No Governo FHC, ela se mostrou palco de intensas disputas, internas e externas, o que ensejou a nomeação de 5 diretores gerais ao longo de oito anos de gestão tucana, um deles, o delegado apontado como especialista em pau de arara, à época da ditadura, João Batista Campelo. No exame desse período, ficaram sem respostas, por parte dos federais, imputações de compra da reeleição pelo governo de FHC e privatizações cavernosas de empresas estatais.

De certo modo, é nos governos petistas que a aura da PF como órgão moderno, republicano e de Estado (não de governo) se afirma e se consolida, até mesmo financeiramente. Mas, de maneira paradoxal, nesse exato momento, a instituição se transforma em um espaço notável de exacerbação da luta política, e à medida em que o condomínio petista parecia, eleitoralmente, irremovível, a oposição burguesa se apoia nas operações da lendária polícia do Estado para travar um combate sem quartel, até pelo menos a derrocada final da frente popular, em 2016, ou, para ser preciso, até a eleição de 2018

Curiosamente, o PT se retirou do palácio do planalto tecendo loas à polícia federal como instituição do Estado. A questão é: até que ponto se deveria asseverar que a sua ação cotidiana estaria em inteira concordância com uma política de Estado?

Lava-jato, polícia federal e a eleição do golpe

A lava-jato usou e abusou de lances pirotécnicos, com o apoio da PF e da mídia. A tática era simples: a polícia federal investigava, Moro conduzia e os resultados das devassas, em geral, eivados de ilegalidade, eram divulgados nos jornais (Folha, Estadão, Globo etc.), revistas (Veja, Época, Isto É e outras) e ganhavam amplo alcance por meio do jornal nacional (Globo). Nesse processo, integrantes da PF – Márcio Adriano Anselmo, Érica Marena, Maurício Valeixo, só para citar alguns – se tornaram “heróis” da mídia empresarial.

Os vazamentos seletivos se converteram, então, em mecanismos de desqualificação dos adversários políticos da direita que, com a derrubada de Dilma Rousseff, se organizou com o firme propósito de voltar ao palácio da alvorada. O que não estava previsto no script da velha oposição burguesa era que o capitão Bolsonaro assumisse a ponta da disputa eleitoral. Consolidada essa tendência, os empresários, a operação lava-jato e a mídia comercial aderiram, de mala e cuia, ao candidato das fake news. Os candidatos da oposição burguesa – com Dória à frente – foram juntos. Ciro Gomes viajou para a Europa. Assim se decidiu o segundo turno da eleição.

Para que o escrutínio pudesse ter o resultado pretendido, Sérgio Moro não se acanhou de “dar uma mãozinha”, lançando ao mundo, mediante o eco da mídia, a delação sem provas de Palocci, resultado do “criterioso” trabalho da polícia federal (aliás, a delação premiada do ex-ministro petista Antônio Palocci, para parecer conscienciosa, abarcava 86 páginas e 39 anexos). Na ocasião, a impagável Cristiane Lobo, comentarista da Globo News, declarou, sem corar: “a delação premiada de Palocci é um tiro de canhão na estrutura do PT”. Com efeito, era um tiro de canhão, mas na instável e frágil democracia eleitoral brasileira.

Não por acaso, a respeito do conluio lavajatista - Moro-procuradores-PF - nas eleições de 2018, o insuspeito ministro do STF, Gilmar Mendes, confessou em entrevista que “se discute a correição ética desse gesto”. O que mais se poderia acrescentar? No máximo, cabem duas indagações: os vazamentos da PF-Operação Lava-Jato é parte da natureza de uma polícia judiciária e administrativa? A atuação da PF não se deu sob a forma de uma órgão fanático a serviço da restauração burguesa à moda antiga?

A eleição do capitão Jair Bolsonaro, certamente, não era a finalidade preliminar de muitos de seus adeptos tardios. Ao fim e ao cabo, se sentiram constrangidos a apoiá-lo, embora, em espírito e consciência, de fato, desejassem o domínio burguês clássico (estilo PSDB-DEM). Mas enquanto vagueava para longe o espectro da velha alternativa, todos se agarraram à carne de atleta do capitão sangrado e vingado. Essa firme decisão de ontem ressurge, a cada dia, das reminiscências daqueles que a viveram.

O que os novos fatos querem nos dizer sobre a polícia do Estado?

Manifestamente, se o ponto de partida é a Constituição de 1988, Jair Bolsonaro deve ser afastado de maneira imediata do governo. Não só ele, mas o seu vice. Esse governo precisa ser deposto sem mais demora. Com efeito, não deveria sequer ter existido.

Quando vieram as revelações da vaza-jato, se o parlamento, a procuradora geral e o supremo decidissem cumprir minimamente as suas funções constitucionais, a sério, era para terem adotado posições e medidas que culminassem na deposição do governo neofascista.

Na vaza-jato ficou nítido o papel pouco republicano da polícia federal. Como não recordar o ativismo judicial da lava-jato e da PF no contexto do pleito que trouxe Jair Bolsonaro ao lugar que hoje ele ocupa? Teríamos essa atual configuração no parlamento e nos governos estaduais à margem desse ativismo judicial-policial? Como não recordar, também, do patusco delegado Luciano Flores rindo do fato de Moro deferir uma busca que não foi pedida por ninguém, mas que ele, mesmo assim, iria ajeitar? O delegado Flores “ajeitou” tanto que, ainda hoje, os Bolsonaros deveriam agradecê-lo.

Pior: quando vieram as revelações do intercept, o que fez a PF, a não ser abrir quatro inquéritos com o fito de inibir as denúncias que enchiam de vergonha os que apoiaram a lava-jato e ainda traziam na pele e na alma o mínimo de pudor? Sérgio Moro proclamou que tudo não passava de um "monte de bobajarada". E aí é preciso perguntar de novo: o que fez a polícia federal além dos quatro inquéritos que, manifestamente, visavam afrontar os denunciantes? Mais do que isso: o que fez o trio Moro-ministério da justiça-PF com as revelações do laranjal do PFS e do bolsonarismo? O presidente recebeu ou não informações sobre o inquérito, que tramitava sob segredo? São muitas as perguntas.

Como se isso não bastasse, Paulo Marinho, suplente do senador Flávio Bolsonaro, relatou que o filho do presidente recebeu informação privilegiada de um delegado da polícia federal, dando conta de investigação contra Fabrício Queiroz, no interregno entre o primeiro e o segundo turnos da eleição de 2018. Nessa ordem, a Operação “Furna da Onça” era momentaneamente imobilizada (sendo deflagada menos de duas semanas depois do segundo turno) para não prejudicar a eleição do pai de Flávio à presidência. Alguém pode imaginar algo mais republicano e de Estado? O fato é que a repressão ao desvio de recursos públicos e a prática de corrupção entrou em stand-by até que o candidato neofascista se elegesse, em segundo turno, presidente da república.

As analisar, ainda que de modo rápido toda essa história que, em última hipótese, repousa na ideia de uma polícia judiciária e administrativa autônoma, não há como não evocar uma conversa na qual uma pessoa tentava persuadir a uma outra de que era politicamente independente, a que a segunda indagou: independente de quem? Partindo desse episódio, o resumo da ópera cabe em uma frase interrogativa: para quem vale a independência dessa polícia de Estado?

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