Por Darlan Reis Jr., historiador

Montagem: cenas da escravidão/ brasão imperial/ Petrópolis 2022
Enquanto o povo brasileiro assiste à mais uma tragédia social, com centenas de mortos na cidade de Petrópolis, mais uma vez a cena se repete: alguns culpam as chuvas, como se a natureza neste caso fosse a principal responsável pelo lamentável número de mortos, desabrigados e desalojados. Parte da responsabilidade é atribuída aos governos, em suas diferentes esferas: federal, estadual e municipal, por não fazerem obras, por não destinarem recursos suficientes, por não enviarem socorro adequado.
Ao mesmo tempo, muita gente ficou surpresa sobre a existência do "laudêmio", sendo amplamente divulgado na mídia, a sua existência. Na página do Portal UOL, no setor denominado "cotidiano", eis a manchete do dia 20 de fevereiro:
"Laudêmio: o que é a 'taxa do príncipe' recolhida em Petrópolis"
O laudêmio é uma taxa cobrada desde o período colonial, em regiões de interesse da Coroa. Em Petrópolis, é recolhido pela CIP (Companhia Imobiliária de Petrópolis), criada para gerir a herança e administrada por dez integrantes da família Orleans e Bragança. A sede da CIP, na Casa da Princesa Isabel, foi danificada pelo temporal. A companhia é a responsável por cobrar a taxa na área da antiga Fazenda Imperial, formada por terrenos comprados por dom Pedro 1º a partir de 1830 e, depois, passadas a seu filho, dom Pedro 2º. Ela compreende grande parte da área central de Petrópolis, epicentro do desastre. A propriedade da antiga fazenda é a base legal para a "taxa do príncipe" de 2,5%. (1)
Esse não é o único tipo de laudêmio existente no Brasil. Quem quiser saber mais sobre este assunto, deixo um link com uma explicação resumida sobre o assunto.
E o que o privilégio do laudêmio para a extinta "família imperial" tem relação com a escravidão e com as catástrofes ditas naturais, no Brasil dos dias atuais?
As catástrofes naturais e as repercussões sociais
Os desastres naturais podem ser do tipo geofísico (terremotos, vulcões, avalanches, deslizamentos de massas - terras, por exemplo); podem ser do tipo meteorológico (tempestades, nevascas etc.); hidrológico (cheias, inundações, deslizamentos); biológicos (epidemias, pragas) e extraterrestres (meteoritos e asteróides) (2). Um desastre natural do tipo que vimos recentemente, envolve processos naturais (chuvas fortes, por exemplo) e pode provocar perdas de vidas humanas e perdas econômicas. É o que infelizmente ocorreu na cidade de Petrópolis, nesses dias de chuva forte de fevereiro de 2020.
Algumas vertentes explicativas discutem os fenômenos aludidos como sendo “calamidades naturais”, ou “desastres ambientais”, conforme o contexto e a percepção teórica. Segundo essas abordagens, as chamadas “forças da natureza” operariam indistintamente sobre a humanidade.
As chamadas calamidades naturais – secas, epidemias, terremotos, tsunamis - tem sempre o componente social como característica central de seus efeitos. Os seres humanos são parte da natureza, porém, as relações sociais são marcadas por disparidades de recursos, poder, assimetrias entre países, e nas desigualdades que condicionam a vida das pessoas. Uma geada, por exemplo, pode ser ou não uma “praga”, dependendo das condições sociais existentes. Assim, as situações de fome e miséria, têm um componente histórico primordial e decisivo no quadro de crise social causado, por exemplo, por epidemias, ou na tragédia que se abateu sobre a cidade de Petrópolis. A questão deixa de ser apenas “natural”, para ser compreendida em termos históricos, com suas repercussões entendidas a partir das relações sociais em que aconteceram.
A herança da época dos privilégios monárquicos
No Brasil, o processo de independência resultou em um novo país, que adotou o regime monárquico-escravista, tendo assim, o escravismo enquanto formação social. Segundo a historiadora Emília Viotti, a mentalidade senhorial e escravista não foi rompida com a Independência. A classe senhorial escravista também era um estilo de vida: a gestação de identidades e valores socialmente compartilhados. Era também a adesão às práticas políticas, administrativas e públicas.
A adoção do regime monárquico garantiu o status de distinção para a família real. A dinastia imperante no Brasil, conforme a constituição outorgada por D. Pedro I, gozava de inúmeros privilégios, que foram aumentados no decorrer do tempo, ou modificados, mas de maneira geral, mantidos. Alguns, até depois da extinção do regime monárquico-escravista, como pudemos perceber de forma mais aguda, na tragédia que mais uma vez se abateu sobre a cidade de Petrópolis. No período imperial, a Coroaatravés das leis, garantiu esses privilégios, não apenas através disso, mas de toda uma operação simbólica, ideológica, operacionalizada pelos intelectuais privilegiados do Brasil Imperial.
E mesmo assim, muitos brasileiros não conseguem associar os privilégios, ou o auxílio do regime à permanência do escravismo no século XIX, apenas identificando o fim da escravidão a um ato de "bondade" da então Princesa Isabel, o que definitvamente não é verdade e não explica o fim do escravismo brasileiro.
A ideologia escravocrata deitou raízes que até hoje marcam a vida brasileira, dentre elas, a questão do racismo e da desigualdade social. Esta herança não pode ser ignorada na hora de avaliarmos o quadro político e social em que vivemos. Entender que aquele mundo do regime monárquico-escravista não pode continuar tendo privilégios, é importante.
Mas isso não pode ser usado como desculpa para as escolhas políticas do presente, pois nossos problemas atuais não são apenas históricos, são responsabilidade da população, distribuída nas diversas classes sociais, cada qual com as devidas responsabilidades.
Espero que o famoso laudêmio de Petrópolis seja destinado às obras para moradia segura, saneamento e meio ambiente. Sei que apenas o uso desse tributo não é suficiente, ainda mais num país com problemas estruturais, políticas neoliberais retratadas como de "austeridade" - teto de gastos, reforma previdenciária, trabalhista - que aumentaram os problemas sociais. Porém, a extinção do laudêmio ou o que o uso do dinheiro arrecadado seja destinado para a população, simbolicamente seria importante.
Notas:
(1) O que é laudêmio, a taxa do príncipe. In: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2022/02/20/o-que-e-laudemio-a-taxa-do-principe-de-petropolis.htm#:~:text=O%20laud%C3%AAmio%20%C3%A9%20uma%20taxa,da%20fam%C3%ADlia%20Orleans%20e%20Bragan%C3%A7a.
(2) SARAIVA, Jorge Gil. Catástrofes naturais: o que são? In: Actas do Colóquio Catástrofes Naturais: uma realidade multidimensional. Lisboa: 2012.
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