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Recuar de criticar o pensamento religioso é recuar de divulgar o materialismo histórico.



Sued Carvalho, professora.



Nos últimos tempos surgiu uma corrente de divulgadores e influencers que vem, continuamente, criticando a atitude de alguns marxistas de criticar a consciência e a concepção religiosa do mundo. O argumento desses populistas filosóficos é o de que afastaríamos as pessoas criticando a religião e que esse é, afinal, um tema secundário, apenas um “sintoma”.


Esta é uma questão que vem ressurgindo com certa frequência, portanto decidi aborda-la nesse espaço. O marxismo seria, inexoravelmente, ateu? Seria possível uma conciliação filosófica, uma aproximação, entre o materialismo histórico e o pensamento religioso? É importante que nosso ponto de partida seja o básico: O que é, dentro do marxismo, a religião?


Para fugir do clichê “A religião é o ópio do povo”, que tantos e tantas afirmam, apaixonadamente, ser uma frase descontextualizada, onde Marx não estaria, de forma alguma, recriminando o pensamento religioso, recorreremos A Ideologia Alemã, onde se defende que:


Todos os idealistas, sejam eles filosóficos ou religiosos, antigos ou modernos, acreditam em inspirações e revelações, em salvadores, em milagreiros; o fato de essa crença assumir ora a forma tosca religiosa, ora a forma erudita filosófica depende apenas do seu grau de instrução, assim como depende unicamente da medida de sua energia e de seu caráter, de sua posição social, etc., se adotam um comportamento passivo ou ativo em relação à crença religiosa, isto é, se são pastores milagreiros ou se são ovelhas se, ao sê-lo, perseguem fins teóricos remotos ou fins bem práticos. (MARX, ENGELS, 2008, P. 512).


A religião é, dentro do pensamento de Marx, uma forma de consciência derivada do Idealismo, uma forma de manifestação deste, porém que, independente da forma que assuma, carrega o mesmo conteúdo: Concebem o mundo como algo que “desce do céu à Terra (...)” (IBIDEM, p. 94). Se o materialismo histórico constitui-se em um rigoroso projeto de acerto de contas com o idealismo acaba sendo, por consequência, um acerto de contas também com a religião. Esse é um elemento básico, inescapável, da filosofia marxista.


Portanto sim, o marxismo é, em essência, ateu. Até a raiz. Mas não paremos por aqui.


A forma como o materialismo histórico concebe o mundo polariza também com a religião. “Como então, tia” - podem e devem vocês me perguntar – “o materialismo histórico concebe o mundo?”. Enquanto a religião, particularmente a cristã, concebe o humano como criado à imagem e semelhança de Deus, portanto seu sopro de vida para [Leiam com a voz do Cid Moreira) “que domine sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todos os animais selvagens e todos os répteis que rastejam sobre a terra.” (GÊNESIS, Cap. 1, Vers. 26), o materialismo histórico defende que:


(...) então, o ser humano – e propriamente enquanto ser humano – não é algo fixamente dado, univocadamente determinado a reagir sobre as circunstâncias externas, mas, em larga medida produto de sua própria atividade, ele exerce sobre suas possibilidades uma ação qualitativamente transformadora do mesmo modo que transformou o desenvolvimento do ser e o ser determinado da forma também em um processo ativo de formação. (LUKÁCS, 2010, p. 127).


Temos diante de nós, portanto, duas concepções auto excludentes de ser humano: Na primeira, idealista de forma religiosa, o ser humano tem origem externa e está em sua natureza, por ordenação divina, sua capacidade de transformar a natureza. Deus, dominus do universo, criou o ser humano a sua imagem e semelhança, portanto deve “o homem” ser, também, aquele a quem os animais têm como messere. ; Na segunda, materialista, o humano não possuía, de forma inata, qualquer tendência de transformar a natureza, mas a necessidade de sobrevivência empurrou nossos antepassados primitivos para o ato de construir ferramentas, iniciando, no paleolítico, o afastamento da barreira natural.


O humano perde sua “mudez” à medida que reage ao mundo ao seu redor, desenvolvendo, no trabalho, entendido como transformação da natureza, formas de sobreviver acaba por transformar a si mesmo, física e psicologicamente, elemento que não passou despercebido a Engels (2020, p. 340):


Assim, a mão não é só o órgão do trabalho, ela é também produto dele. Só através do trabalho, através da adaptação a operações sempre novas, através da transmissão hereditária do formato específico adquirido nesse processo, dos músculos, dos tendões e, em períodos mais longos, também dos ossos, e através da aplicação sempre renovada desse refinamento herdado a novas operações cada vez mais complexas, a mão humana atingiu o alto grau de perfeição que lhe permitiu tirar da cartola os quadros de Rafael, as estátuas de Thorvaldsen, a música de Paganini.


À medida que, no trabalho, o ser humano vai dominando técnicas que tornam mais fácil sua existência, torna-se capaz de manipular, em grau crescente de complexidade, o ambiente em que vive, desenvolvendo, inclusive, a agricultura, revolução técnica que, pode-se afirmar, possibilitou a sociedade como hoje a conhecemos, a barreira natural afasta-se mais e mais. O trabalho é, para o marxismo “é o fundamento mais essencial e mais imediato do pensamento humano, e a inteligência do ser humano cresceu na mesma proporção em que ele aprendeu a transformar a natureza.” (ENGELS, 2020, p. 133).


A sociedade, um agrupamento contraditório, diverso e complexo de seres humanos, é o desenvolvimento do bando nômade, possibilitado pela descoberta, por parte de alguns povos, da agricultura, que mudou o foco de alguns povos do nomadismo para o sedentarismo. Na sociedade, desenvolve-se a individualidade, uma visão de si em relação ao outro:


Um ser que não tenha sua natureza fora de si não é nenhum ser natural, não toma parte na essência da natureza. Um ser que não tenha nenhum objeto fora de si não é nenhum ser objetivo. Um ser que não seja ele esmo objeto para um terceiro ser não tem nenhum ser para seu objeto, isto é, não se comporta objetivamente, seu ser não é nenhum ser objetivo. (MARX, 2004, P. 127).


O conhecimento de si só é possível quando existe o outro, a interpretação do mundo e resultado dos estímulos que recebemos do mundo material que nos rodeia e não o contrário. O ser humano é o único animal, até agora, imbuído e construtor de historicidade, que sofre, conscientemente, a mudança e a transformação, pois é um ser “enquanto ser objetivo e sensível é, por conseguinte, um padecedor e, porque é um ser que sente seu tormento, um ser apaixonado". (MARX, 2004, p. 128).


Essa paixão, entretanto, não pode ser confundida com o sentimento romântico, nesse contexto define-se paixão como “A força humana essencial que caminha energicamente em direção a um objetivo.” (MARX, 2004, p. 128). Essa força humana essencial é a teleologia, formada da capacidade de transformar a natureza, onde o homo sapiens diferencia-se dos outros animais.


Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do início do processo, portanto, um resultado que já existia idealmente. (MARX, 2013, p. 256).


O trabalho humano tem uma origem primitiva instintiva (Fome, frio, necessidade de proteger-se de ameaças), mas sua execução é permeada pelas subjetividades desenvolvidas pelo desenvolvimento da técnica e da cultura, por complexas preferências derivadas da capacidade de “conceber o ato”. Basicamente, a abelha faz a colmeia por puro instinto, sem afetar o habitat no qual está inserida, variando a “arquitetura” desse abrigo natural de espécie para espécie apenas, o homo sapiens, por outro lado, faz seus abrigos a partir de variáveis diversas, classe social, possibilidades, relações sociais de trabalho, legislações e gostos individuais, assim como é capaz de “conceber” o trabalho que será executado.


O humano existe enquanto individualidade e enquanto generidade. Essa condição, de inseparabilidade de gênero e indivíduo é fruto de um processo histórico e técnico longínquo:

O desenvolvimento real da individualidade sempre socialmente fundada, nunca simplesmente da natureza, que brota da singularidade meramente natural, é um processo muito complexo, cujo fundamento ontológico é formado pelos pores teleológicos da práxis com todas as suas circunstâncias (...) (LUKÁCS, 2010, p. 80).


Percebem? Para o pensamento religioso, o ser humano é “excepcional” por sua descendência divina, suas capacidades são inatas e indicam uma vontade, plano ou permissão do ser superior de dar ao ser humano a “responsabilidade” de cuidar do mundo ou o “direito” de dominá-lo. Essa concepção é profundamente contraditória à do materialismo histórico.


Isso quer dizer que o idealismo religioso e o marxismo têm diferentes formas de explicar superioridade humana sobre outras espécies? Para o marxismo o ser humano construiu, através do trabalho, sua superioridade, diferente dos religiosos, que acham que essa superioridade foi dada por algum ser ou consequência do ato de algum ente superior?


Não. O ser humano não é “superior” aos outros animais, tampouco está acima da natureza, a barreira natural, afastada pelo avanço da técnica, não é jamais suprimida. O ser humano enquanto individualidade e generidade, assim como a sociedade, são inseparáveis da natureza, estão unidas metabolicamente.


É importante enfatizar: Fala-se de um recuo, não de um desaparecimento das barreiras naturais, jamais sua supressão total. De outro lado, porém, jamais se trata de uma constituição dualista do ser humano. O homem nunca é, de um lado, essência humana, social e, de outro, pertencente a natureza. (LUKÁCS, 2010, p. 42).


O metabolismo entre sociedade, fundada pelo trabalho humano, e natureza não é suprimível. Como se dão, portanto, em um determinado contexto histórico (Tempo e espaço), as relações de transformação da natureza, quais suas contradições? Quais formas assume no desenvolvimento das sociedades? Todas as grandes teses do marxismo, da Luta de classes à necessidade histórica da derrubada do capitalismo, surgem dessas perguntas, que tem a concepção de ser humano, de trabalho e de sociedade apresentadas anteriormente, como pressuposto.


Qual, portanto, o papel de Deus e de Cristo na filosofia marxista? Na explicação do mundo e da sociedade, nenhum.


A pesquisa da natureza se tornou, essencialmente, emancipada da religião, embora a discussão completa de todos os detalhes se estenda até hoje e, em muitas cabeças, esteja longe de terminar. (ENGELS, 2020, p. 34).


Deus é uma representação, uma imagem criada pelos humanos a partir das condições históricas nas quais estão inseridos, tendo função, primeiramente, de explicar o mundo como, também, funções ideológicas específicas, isto é, de naturalizar as relações sociais em determinado período através da linguagem mítica, que reverencia o imobilismo, a permanência e a tradição.


Também as formações nebulosas na cabeça dos homens são sublimações necessárias do seu processo de vida material, processo empiricamente constatável e ligado a pressupostos materiais. A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, bem como as formas de consciência são privadas, aqui, da aparência de autonomia que possuíam. Não têm História, nem desenvolvimento; mas os homens, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais, transformam, também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos do seu pensar. (MARX, ENGELS, 2008, p. 94).


A figura de Deus não é criadora, mas criatura, os conceitos definidores deste personagem imaginário (Nem Marx, tampouco Engels relutariam em colocar o Senhor Javé nesses termos) transformam-se com os humanos, em sua historicidade, pois as ideias “sobem” da materialidade das relações sociais de determinada época. Porém, o estranhamento do homo sapiens em sociedade, diante do personagem imaginário criado coletivamente, é disputado e, tendencialmente, apropriado, pelas classes dominantes de cada época.


As ”ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante.” (MARX, ENGELS, 2008, p. 47). Sendo Deus uma ideia, a versão dominante do Senhor em cada época, é a versão que retrata os valores da classe dominante nesta época e isso não é uma abstração vazia, pois as elites econômicas possuem os meios de comunicação mais amplos (“Regulam a produção e distribuição de ideias do seu tempo”), são capazes de influenciar os paradigmas educacionais e controlam a política, moldando o senso comum.


Assim como o Superman do Século XXI não é o Superman dos anos cinquenta do século XX, o Deus no capitalismo não é o Deus que era venerado durante o feudalismo na Europa. Assim, a divindade não aparece, no marxismo, como um ser independente, capaz de guiar os rumos da humanidade, mas como um fenômeno social que serve como justificadora da ordem vigente.


Para concluir esse longo texto que me tomou toda a noite de quinta-feira e manhã de sexta, podemos afirmar que não criticar o pensamento religioso é abdicar de refutar o idealismo, portanto é recuar de divulgar o materialismo histórico. A Religião, para além de ser contraditória, metodologicamente, com o marxismo essencialmente ateu, é, também, em cada época, partícipe do reacionarismo.


Fazer coro ao negacionismo científico e ao irracionalismo não é a solução para a maré baixa revolucionária que temos vivido.



Bibliografia

ENGELS, Friedrich. A Dialética da Natureza. Boitempo Editorial: São Paulo, 2020.

LUKÁCS, Gyorgy. Prolegômenos para uma Ontologia do ser social. Boitempo Editorial: São Paulo, 2010.

MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política Livo I: O processo de produção do Capital. Boitempo Editorial: São Paulo, 2013

________. A Ideologia Alemã: Crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do Socialismo alemão e seus diferentes profetas. Boitempo Editorial: São Paulo, 2008.

________. Manuscritos econômico-filosóficos. Boitempo Editorial: São Paulo, 2004.

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