Por Peterson Pacheco (Cientista Social)
A sequidão e a quentura do Centro Oeste só se aliviam por conta da brisa boa que sopra do Jardim Botânico e empresta ao apartamento essa baforada de lugar litorâneo.
É incrível. Já morei em apartamento aqui mesmo do prédio, só que da coluna oposta. É a frente da rua, dá de cara com o Shopping que tem nome de árvore: Flamboyant. Mas, curioso, o Flamboyant de concreto, aço e agonia não soprava brisa alguma. De lá só avistava as luzes que servem de envólucro para as mercadorias fetichizadas.
Aqui, num apartamento da coluna nos fundos do prédio, além da ausência do glamour da vista para o Flamboyant sempre me advertiram sobre o vizinho. É que ao lado, vizinhos quase que de "parede-e-meia" (diz-se meia-parede em alguns lugares do Brasil) há um espaço municipal que abriga Creche e CEMEI (Escola de Educação Fundamental).
É que as crianças, pela sua natureza de criança, fazem coisas de criança. E parece que temos no ar um certo nariz torcido para as coisas de criança: se não é isso o que mais seria esse fetiche no disciplinamento militarizado das crianças pobres e remediadas das escolas públicas?
Pois bem, junto da fresca brisa que recebo, um presente do Jardim Botânico de Goiânia, que se desdobra como uma espécie de quintal dessa varanda de quinto andar, recebo um tanto de coisas de criança, vindas aqui da escola e da creche minhas vizinhas e que são repletas de crianças pobres e remediadas.
Além de ir à varanda ver a brisa, sentir o Jardim Botânico e encostar no céu (pra quem não sabe, dependo de como for, aqui no Centro Oeste se levantar as mãos praticamente você toca as nuvens) eu aproveito e vibro com as coisas de criança.
É choradeira na creche, é correria na quadra do CEMEI, é o burburinho da vida de criança, num lugar onde criança tem mais é que viver mesmo: na Escola. Diferente da maioria, coisas de criança não me incomodam.
Ao contrário, nos fins de semana chego na varanda aqui da coluna dos fundos do prédio, vejo a brisa, sinto o Jardim Botânico, encosto no céu, mas olho pra quadra e pro pátio da escola e fico perguntando porque naquele lugar de crianças não tem crianças fazendo coisas de crianças.
Agora a pouquinho olhei no relógio porque gosto de ver quando o marcador digital registra 00:00 e fiquei pensando: - a brisa que me pega aqui no meu quinto andar não é a mesma que bafora as ventas das crianças que usam o espaço que é meu vizinho de parede-e-meia.
Tão pertinho desse meu vizinho, mas, aqui de cima, sou sim um privilegiado. Vejo melhor a brisa, sinto melhor o Jardim Botânico (que de verdade ali de baixo nem se vê) e toco mais fácil o céu. Agora então que entulharam mais três salas de aula, comendo parte do pátio, deve estar é mais apertado lá em baixo, isso sim.
Só pelo fato de ver melhor a brisa, sentir melhor o Jardim Botânico e tocar mais facilmente o céu já me sinto com mais sorte do que aquelas crianças pobres e remediadas ali da Creche e da Escola. Mas eu volto pra mesa, dentro do apartamento e sento no computador. Abro notícias e mensagens. E vejo no que querem transformar as creches e escolas que abrigam crianças pobres e remediadas no país.
Aqui meu vizinho é um desses lugares. As crianças ali que já não tem a mesma brisa que eu tenho, não tem o mesmo Jardim Botânico que eu tenho, não tem o mesmo céu que eu tenho, agora estão cada vez mais perto do disciplinamento militarizado e de um ambiente que lhes rouba a oportunidade serem crianças num lugar cheio de crianças. E tão ruim quanto, a escola propriamente, cada vez menos dedicada às criancices e aos esforços de fazer dessas crianças pobres e remediadas seres criativos, livres e curiosos (aprendi com o Bourdieu que a alma do cientista é dúvida radical).
A minha brisa melhor que a daquelas crianças da escola e da creche, minhas vizinhas, eu conseguia suspirar quieto. O meu Jardim Botânico melhor do que o delas eu ruminava conformado. O meu céu mais perto do que o céu delas eu entendia bem.
Mas, a minha filha, aluna de colégio caro e particular, poder ser criança na escola que é lugar de criança; no tempo livre correr, jogar bola, fazer slime, invadir banheiros atrás da loira do banheiro, correr gritando feito sirene tresloucada, rindo, tramando com as amigas, ensaiando passos de uma apresentação de dança, correndo mais, rindo mais, gritando mais... e as crianças minhas vizinhas, por sugestão do ministro, em ordem unida, em disciplinamento militar, cantando hinos pátrios e entoando slogans políticos...
Enquanto a minha filha, aluna de colégio caro e particular, tem meia hora de laboratório, usa o computador da escola para usar a plataforma digital com vídeos e exercícios dos conteúdos programáticos as crianças minhas vizinhas estarão perfiladas diante das bandeiras da Cidade de Goiânia; do Estado de Goiás e o Brasil...
Não bastasse a brisa, o Jardim Botânico, o céu, agora a minha filha também pode ser mais criança na escola dela do que essa menina pobre e remediada vai ser na escola minha vizinha. Enquanto na escola cara e privada tem meia hora de atividade planejada na pública tem meia hora de pelotão formado...
A minha brisa melhor que a daquelas crianças da escola e da creche, minhas vizinhas, eu conseguia suspirar quieto. O meu Jardim Botânico melhor do que o delas eu ruminava conformado. O meu céu mais perto do que o céu delas eu entendia bem. Mas, a minha filha ser mais criança do que a meninada aqui do lado, a minha filha ter mais oportunidade do que a meninada aqui do lado... eu só aceitaria em silêncio se fosse um canalha!!!!
Sou resistência ao ataque deplorável contra a educação e contra os educadores. Ser indiferente não é uma opção pra mim.
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