Sued Carvalho, professora.
O último domingo, dia 08/01/2023, ficará marcado na história do Brasil como uma data trágica, onde fascistas, chamemo-los pelo nome, invadiram a Praça dos Três Poderes, destruíram patrimônio público e causaram choque nacional e internacionalmente. Foi chocante, foi triste, mas apenas um ingênuo ou um cúmplice poderia afirmar que foi inesperado.
Desde 2014 a institucionalidade brasileira vem demonstrando, com cada vez menos máscaras, seu caráter de classe, a letra da lei vem sendo rasgada à vontade de empresários, banqueiros, latifundiários e militares. Jair Bolsonaro, ex-presidente fascista e criminoso, fez diversos discursos de cunho político em quarteis e na Academia Militar dos Agulhas Negras (Aman), ainda no ano daquela eleição polarizada pela ex-presidenta Dilma e pelo ex-Senador e, nas horas vagas, aspirador Aécio Neves, atos políticos são proibidos em quartéis.
Essa dispensa da lei, essa demonstração mais evidente do caráter de classe do Estado brasileiro, se tornou ainda mais flagrante após o golpe de 2016. O governo golpista e ilegítimo de Michel Temer pôde praticar todo tipo de ilegalidade, desde que passasse as contrarreformas desejadas pelos grandes empresários: Reforma do Ensino Médio, Reforma trabalhista, Emenda Constitucional 55, etc.
Foi no governo Temer que os militares ganharam passe livre para dar demonstrações políticas evidentes, o exército ganhou o Ministério da Defesa com a indicação do General Joaquim Silva e Luna, uma recompensa pela participação e endosso no golpe de 2016, assim como generais, coronéis, majores e capitães manifestaram de forma descontrolada, suas opiniões políticas nas redes sociais, ficando emblemático o episódio em que o General Villâs Boas tweetou uma ameaça aos ministros do Supremo Tribunal Federal, que iria julgar o harbeas copus do à época ex-presidente Lula.
Nada foi punido e nenhuma reação enérgica das instituições “democráticas” se realizou. Por quê? Os militares foram parte do golpe e Temer estava passando as reformas desejadas pela burguesia, não havia clima, nem vontade política para enquadrar aqueles que estavam garantindo que os grandes empresários, verdadeiros detentores do poder, tivessem aquilo desejavam: Estatais privatizadas para investir seu capital e menos direitos trabalhistas para sobrecarregar trabalhadores, pagando-os menos ainda por isso.
Nas eleições de 2018, no entanto, o bloco do golpe rachou, a ala plutocrática, representada por Temer e seus amigos mais próximos, entrou em conflito com a ala militar. A ala plutocrática, assim como todo o centrão, apoiou a candidatura do neoliberal Geraldo Alckmin, que garantiria a continuidade das contrarreformas com a legitimidade que Temer não tinha, haja visto que teria sido eleito “democraticamente”. Os militares não concordavam, seu candidato era outro: Jair Messias Bolsonaro.
Bolsonaro já era o candidato dos militares desde 2014, assim como em sua carreira de Deputado Federal sempre fez o papel de defensor da Ditadura Militar e dos privilégios dos oficiais de alta patente. Bolsonaro foi um projeto das Forças Armadas que não queriam mais participar apenas de forma marginal de um governo, muito menos ser uma força silenciosa de Estado, queriam o poder, tinham um projeto político e estavam ansiosos por sua aplicação. Toda a construção da figura de Bolsonaro como presidenciável em potencial foi incentivada, facilitada e endossada pelos militares, desde antes do golpe de 2016.
Não foi a ala plutocrática do golpe de 2016, representada pela candidatura de Geraldo Alckmin, que foi para o segundo turno, mas sim a candidatura da ala militar, Jair Bolsonaro, que venceu Haddad e tornou-se presidente do país. A ala militar do golpe estava no poder e a ala plutocrática teve que engolir, mas não de graça, pois o governo que se iniciou em 2019 garantiu com ainda mais agressividade as reformas e benefícios para a burguesia.
Como foi possível perder para Bolsonaro em 2018? Muitos afirmam que isso foi fruto da indústria de Fake News e pânico moral que se instaurou. Essa visão é ingênua. As Fake News, os grupos de transmissão, os disparos em massa foram um assessório importante, de fato, mas a verdadeira causa foi o distanciamento dos grandes Partidos da esquerda das pautas cotidianas do povo trabalhador, que se encontrava revoltado com a corrupção, desemprego e sucateamento dos serviços públicos. Ao se afastar da população revoltada os grandes partidos da esquerda reformista, principalmente o Partido dos Trabalhadores (PT), abriu um vácuo que foi preenchido pela ala militar e por Bolsonaro.
Com sua retórica raivosa, uma imagem artificialmente fabricada de “outsider” e honesto, Bolsonaro seduziu o trabalhador revoltado com a situação do Brasil. A maioria desses eleitores logo se desiludiria e passaria a fazer parte da volumosa estatística de desaprovação do governo que se iniciou em 2019, mas foi a consequência de longo prazo de um erro da esquerda reformista que abriu espaço para a expansão do fascismo da ala militar do golpe de 2016. Não podemos repetir esse erro.
Os crimes passaram a ser cometidos de forma aberta no governo militar que se iniciou em 2019, casos de corrupção abundavam, acobertamentos eram evidentes, com substituição de delegados da Polícia Federal assim que saíam notícias de mal feitos do Governo, nepotismo era praticado ao olhar de todos, a imprensa era agredida diariamente, uma atitude golpista era incentivada, sem falar nos experimentos em seres humanos em larga escala durante a pandemia, em que o governo impôs a tese da imunidade de rebanho e empurrou goela abaixo de milhões de brasileiros remédios sem comprovação, como a Cloroquina.
Por quê? Por que o governo continuava seguindo a linha econômica do governo Temer, entregando as contrarreformas desejadas e esperadas, dando vultosos lucros para os bancos e o agronegócio. A lei não interessava e o Estado pertence a burguesia no capitalismo, nunca foi tão evidente como durante o governo Bolsonaro.
A soltura de Lula em 2021 mudou o jogo, pois pelas estatísticas de intenções de voto ele era o único capaz de vencer Bolsonaro nas vindouras eleições de 2022. A ala plutocrática do golpe de 2016, desesperada por voltar à direção do Estado, tentou por todo o período que seguiu à libertação de Luís Inácio emplacar uma “3ª via”, sempre um nome nos moldes de um Geraldo Alckmin ou um Michel Temer. A grande mídia se esforçava em construir nomes como o de Eduardo Leite, João Dória, Sergio Moro, etc. para bater tanto a ala militar, como Lula.
Não teve jeito! Não se emplacou a terceira via, assim como Lula e parte do Partido dos Trabalhadores escolheu cometer os mesmos erros de 2022, 2006 e 2014, afastando-se da luta popular e tentando se construir como o candidato da ala plutocrática. Os indícios da atuação de Lula nas eleições de 2022 podiam ser vistos ainda em 2021, durante as massivas manifestações que se deram naquele ano, que pediam vacina, segurança alimentar e a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão. Luís Inácio não pronunciou sequer uma palavra a favor das manifestações e se colocou contra a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão, visando desgastar o presidente fascista até as eleições do ano seguinte.
Um erro! Um erro brutal! Primeiramente, havia 3.000 pessoas morrendo por dia à época, milhões passando fome. O fim do governo Bolsonaro era questão de urgência! A não adesão de uma figura popular como Lula foi, no mínimo, de uma falta de sensibilidade tremenda, segundo que Bolsonaro não se desgastou, teve tempo para recuperar parte de sua popularidade e tornar-se mais uma vez um candidato competitivo, dando grande trabalho ao PT no corrente ano.
O então presidente Bolsonaro não apenas recuperou parte de sua competitividade, como partiu para o ataque, incentivando os fascistas que o seguem a preparar-se para um golpe, com claro endosso dos militares, que ameaçavam os poderes civis com notas agressivas, principalmente durante o período que se seguiu a CPI da pandemia. Foram dois ensaios gerais para uma tentativa de golpe, nos respectivos 07 de setembro de 2021 e 2022, atos abertamente endossados pelas forças armadas, que realmente encabeçavam o governo Bolsonaro.
Lula, em vez de se aproximar da revoltada população, alimentava falsas esperanças eleitoreiras e legalistas nos movimentos sociais, fazendo-os acreditar que bastava “vencer no primeiro turno” para coibir a movimentação golpista, ao mesmo tempo que tentava se tornar o candidato da ala plutocrática, colocando o candidato da burguesia “perfumada”, Geraldo Alckmin, como vice.
A tempestade perfeita. De um lado militares golpistas agressivos, com uma base facistizada, do outro um candidato de coalização pouco disposto a construir um movimento popular capaz de fazer o enfrentamento, mais preocupado em conversar com os representantes do mercado do que com a base popular, subestimando o perigo, que tomou contornos abertos de insubordinação logo no segundo turno a Polícia Rodoviária Federal tentou impedir eleitores lulistas de chegar às sessões, desobedecendo portarias do Tribunal Superior Eleitoral.
A popularidade de Lula, pela lembrança de seus governos, o levou a vitória. Uma importante vitória, é necessário dizer! Esta que vos escreve, inclusive, esteve na rua no segundo turno fazendo campanha para ele, pois na política, às vezes, é necessário saber escolher o mal menor. A transição, no entanto, foi previsível no pior sentido. Lula indicou José Múcio Monteiro, amigo dos generais e de Bolsonaro, para não melindrar os militares criminosos, responsáveis por diversas ameaças de golpe e por quase 700 mil mortes durante a pandemia, não prometeu rever nenhuma reforma importante dos governos Temer-Bolsonaro, reformas estas que são as grandes causadoras da epidemia de fome e desemprego que vivenciamos.
Do outro lado também trágica previsibilidade. Fascistas acamparam diante dos quarteis, pedindo golpe militar, recebendo financiamento de latifundiários, felizes pela ampla permissão de destruir a Amazônia e invadir áreas indígenas nos quatro anos anteriores, e endosso dos generais. O grupo de transição prometeu, na figura do presente Ministro da Justiça Flavio Dino, ser duro com os acampamentos golpistas, ao mesmo tempo em que era generoso com os generais que incentivavam tais atos. Não era convincente.
O resultado da subestimação do perigo? O que vimos ontem em Brasília, fascistas, amplamente financiados pelo latifúndio, protegidos dentro do governo Lula pelo bolsonarista José Múcio Monteiro e pelo governador do Distrito Federal Ibanês Rocha (Rápido em jogar toda a responsabilidade apenas para seu secretário, Alexandre Torres) invadindo e destruindo a capital federal! O exército esperou o resultado para se pronunciar, assim como José Múcio que apenas próximo da madrugada anunciou que as Forças Armadas irão acabar com os acampamentos golpistas de frente aos quarteis. Filho feio não tem pai.
Se o golpe, tentado pelos fascistas e latifundiários, tivesse sucesso o exército se pronunciaria a favor ou contra? Por que os generais esperaram o resultado final para se expor? Nos últimos quatro anos se pronunciavam sobre tudo, estavam no governo e participavam da articulação política, mas ontem, os “guardiões da lei e da Ordem” só tinham a oferecer o mais sepulcral silêncio.
Diante disso, o que deve fazer a esquerda? 1) Não cair na ladainha de Frente Ampla com a ala plutocrática do golpe de 2016, não permanecer no erro da ilusão eleitoreira, aproximar-se das demandas cotidianas da classe trabalhadora, recuperando sua confiança. O blá, blá, blá da conciliação de classe já demonstrou estar fadado ao fracasso. Errar uma vez é aprendizado, errar duas vezes indo pelo mesmo caminho é burrice. Não precisamos de esquerda agradando banqueiro e tendo medo de militar. 2) Denunciar os generais golpistas, assim como o agronegócio. Jair Messias Bolsonaro era apenas o rosto de um projeto dos militares, o seu governo era um governo militar. Generais da ativa e da reserva opinavam sobre política, participavam do governo e articulação, assim como participaram das ações durante a pandemia. Devem ser responsabilizados. Responsabilizar apenas o boi de piranha mais famoso do Brasil (Que é Bolsonaro) é jogar a poeira debaixo do tapete. 3) Exigir a exoneração do bolsonarista José Múcio Monteiro, o ovo da serpente dentro do governo Lula, assim como afastamento definitivo de Ibanês Rocha. 4) Lutar por resoluções radicais para problemas graves: Reforma agrária para derrotar o latifúndio que sempre está ao lado dos mais reacionários e fascistas políticos, reestatização das empresas privatizadas, fim do Novo Ensino Médio e fortalecimento do ensino crítico nas escolas, regulamentação da Mídia, entre outros. Essa é a verdadeira agenda mínima! 5) Devemos sempre criticar o Governo Lula à esquerda! Nunca cair na armadilha de moralismos baratos, nossa crítica tem de ser inteligente e radical, devemos lutar por uma atitude mais à esquerda do presente governo, enquanto construímos uma alternativa realmente popular e socialista.
É impossível cometer o mesmo erro duas vezes e esperar resultados diferentes. Temos de ter uma política de independência de classe, voltada para a construção de um governo popular! Temos de resgatar nosso papel de vanguarda, lutar pelas pautas imediatas sempre pensando em como a luta de hoje ajudará na formação de um plano de longo prazo de transformação de nosso país! Sem isso estaremos lutando às cegas e, em breve, um novo projeto de fascismo tropical surgirá. Precisamos vencer!
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