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Uma Geografia perdida do livro na cidade

Por Glauco Vieira, geógrafo e artista


Percorrer as áreas centrais das grandes cidades é uma aventura para qualquer amante dos livros. Há o termo mais apurado para os amadores com distinção – estes são os bibliófilos. A bibliofilia é uma verdadeira arte desafiadora para colecionadores. José Mindlin foi um de nossos principais, senão o maior, colecionador de livros raros no Brasil; ele até publicou uma espécie de manual no qual apresenta sua história e atividade na bibliofilia. A raridade de um livro deve atender a algumas condições: ser a primeira edição publicada, ser autografado pelo autor e, obviamente, possuir edição numerada. O Mindlin, e como tantos outros amantes do livro físico não pouparam esforços para agregar livros raros em suas coleções. Já amadores menos exigentes se deleitam simplesmente em garimpar alguns exemplares nos inúmeros sebos espalhados nas metrópoles tendo em vista os temas de suas predileções.


São nos grandes centros urbanos onde se concentram os sebos. Pelo menos isto garantia a presença de um público fiel peregrinando e compondo uma geografia “sagrada” nas cidades. Os leitores apaixonados em vasculhar religiosamente aqueles recantos cavernosos e empoeirados escondidos em guetos, galerias e zonas decadentes, mantinham suas trilhas de busca tendo o livro como um artefato quase que “sagrado”. Ao leitor eram exigidas algumas habilidades próximas as de um arqueólogo. Devia possuir conhecimentos de história, geografia, antropologia, filosofia, ademais ajudaria bastante se compreendessem outras línguas. Jorge Luis Borges reunia um pouco de todas estas competências. O escritor argentino defendia que os livros deveriam ser ordenados lado a lado nas estantes por afinidades eletivas e não simplesmente por um código de catalogação universal. Todo leitor que se perdia no labirinto dos sebos sabia se encontrar na ordem do caos. Um Lukács, por exemplo, estaria dialogando melhor na mesma estante com Marx do que numa estante da seção “Artes”. Assim como um Machado de Assis casaria bem ladeado com um Freud do que na prateleira de literatura nacional.


Mas os sebos foram se sofisticando, e esta lógica “arqueológica” dos leitores das gerações de outrora passou a se estruturar diferentemente. As lojas de livros usados tiveram que se ajustar ao novo público e mercado. O olhar por entre os volumes empoeirados em prateleiras pensas com pilhas de edições antigas ou seminovas parece ser uma prática a se tornar obsoleta. Pelo menos até os anos 1990 e primeiro decênio do século XXI o trabalho de busca num sebo ainda era muito praticado. Depois, com o incremento do meio digital, as bibliotecas e os sebos foram também digitalizando seus acervos. Através da internet os leitores agora podem conferir seus milhares de exemplares. O contato direto com os livros vai sendo substituído pelo teclado em busca virtual dos títulos.


Já não se pode testemunhar como os livros estão dialogando nas estantes e nem mesmo de misturar entre os outros aquele que gostaria de adquirir em outra vez quando voltasse àquele “santo” lugar; nem mesmo tomar um cafezinho com o livreiro e pescar aquele livro que ele acabara de receber ou de negociar um preço justo ou amenizado com ele; e nem mesmo encontrar outros leitores para permutar informações sobre livros proibidos pela censura em gerações mais antigas; e nem muito menos de se perder na cidade para se encontrar outra vez na célere vida ajustada pelo tempo do capital e que se ganhava no prazer inegociável das leituras de meia página roubadas.


Daí alguém teve a ideia de reunir todos os sebos num único sebo virtual. Sim. Agora o valor do livro usado passa a ser regulado por um site principal. Aquele valor que qualificava o livro pelo uso, e plenamente negociável entre a sensibilidade do leitor e do livreiro, passa então a ter como referência a valoração do referido site. Imaginem o antigo diálogo:


(Leitora) “Faz tempo que procuro este livro, Le Sang des autres, de Simone de Beauvoir, um de seus romances que me falta ler; quanto custa?

(Livreiro) “Estou cobrando vinte e cinco reais, embora valha bem mais..”; (leitora) “Podemos fechar nos vinte, então? É o que posso pagar”;

(Livreiro) “Você é uma cliente assídua, vou fechar nos vinte desta vez!”.


Este tipo de diálogo não existe mais. Só existe uma opção: comprar ou não conforme o preço informado no site. Se se optou em comprar, em seguida você será direcionado para contatar o sebo e acompanhar o rastreio da postagem de sua encomenda. Simples assim! Todos os valores dos mesmos títulos foram nivelados. O tempo entre as prateleiras perdeu-se. A conversa agora é com a máquina virtual. A troca é valorada pela homogeneidade dos preços mais altos, para não dizer exploradores. E muito leitores que viveram o tempo quando os livros usados eram valorados pelo uso penam com a desumanização do seu valor de troca.


Neste périplo do amante dos livros pela cidade interrompido pela máquina hegemônica digital, o futuro da leitura tende a ser distópico. Celulares, tablets – e demais dispositivos móveis – passam inclusive a iniciar a substituição quase sem volta dos livros físicos. O livro vai perdendo corporeidade e ganhando a efemeridade do “formato portátil de documento” – o chamado PDF. E dizemos “quase sem volta” porque restam os livros que ainda usados e guardados em casa podem vir a ser os arquivos de resistência da memória da sociedade no porvir.


Por certo, Raymond Bradbury, em seu Fahrenheit 451, previu como em nosso tempo a cultura livresca passa a ser incendiada pelo novo estatuto digitalizado e homogeneizado da civitas. Não é mais o passeio público com sua magia de percorrer os becos ou o desconhecido com a aura da descoberta de um livro raro para o fidedigno leitor ou colecionador; o passeio agora é na web: ela ajusta os preços, reúne todos os sebos em uma “geocity virtual”, e no final o leitor é apenas mais um consumidor e o livro uma mercadoria tão volátil que se desmancha na “tecnosfera”!

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